Topo

Por que youtubers mirins viraram a nova dor de cabeça do Google no Brasil?

Captura de tela de vídeo do canal da youtuber mirim Julia Silva com as bonecas Monster High - Reprodução/YouTube Julia Silva
Captura de tela de vídeo do canal da youtuber mirim Julia Silva com as bonecas Monster High Imagem: Reprodução/YouTube Julia Silva

Márcio Padrão

Do UOL, em São Paulo

02/01/2019 17h21Atualizada em 04/01/2019 09h01

Bonecas, material escolar, lojas de brinquedos, programas de TV e viagens. Estes foram alguns dos temas de vídeos publicados em canais apresentados por crianças --os "youtubers mirins"-- que foram destacados em uma ação civil pública do Ministério Público de São Paulo contra o Google, empresa dona do YouTube, como informado pela "Folha de São Paulo" nesta quarta (2).

O processo, que afirma haver abuso de publicidade contra o público infantil, ainda será analisado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Ao todo foram citados 105 vídeos de sete canais: Julia Silva (25 vídeos), Felipe Calixto (24), Vida de Amy (dez), Manoela Antelo (nove), Gabriela Saraivah (quatro), Marina Bombonato (23) e Canal Duda MH (dez). Eles somam mais de 13 milhões de inscritos.

Os vídeos mostram os jovens apresentando brinquedos como as linhas de bonecas Monster High e LOL Surprise saindo da caixa e mostrando detalhes --prática conhecida como "unboxing"-- além de brindes do McLanche Feliz, da McDonald's, e viagens pagas pelo canal de TV Cartoon Network, no total de 15 empresas citadas. Estas supostamente pagam ou dão produtos e convites aos youtubers, que retribuem com os vídeos.

Quem entrou com a ação foi o Instituto Alana, ONG que promove o direito e o desenvolvimento da criança. A entidade mantém desde 2006 a iniciativa Criança e Consumo, que monitora abusos envolvendo o consumismo no público infanto-juvenil. Uma das ações do Alana é realizar monitoramentos frequentes e receber denúncias no YouTube.

Publicidade além da TV

"Nos últimos anos está ocorrendo uma migração dos anúncios de crianças na TV para outros espaços e meios de comunicação, como escolas, espaços públicos, pontos de venda, internet, aplicativos e YouTube. Em 2015, quando o fenômeno dos youtubers mirins começou a crescer, a gente recebeu denúncias de pessoas e passou a fazer buscas ativas sobre isso", diz a advogada do Alana, Lívia Cattaruzzi.

Por meio de uma denúncia inicial envolvendo a McDonald's e o canal Kids Games TV no MP-RJ, em 2015, e uma seguinte de 2016 com a rede de lanchonetes e mais 14 empresas, as ações acabaram se unindo em uma só, que foi transferida para o Ministério Público de São Paulo, onde estão sediadas as empresas.

O processo foi motivado pelo fato de o Instituto Alana ter percebido uma estratégia coordenada das empresas anunciantes dentro dos canais. A Mattel, por exemplo, estaria por trás de uma série de vídeos-desafios da youtuber Julia Silva para que as meninas vencedoras visitassem a sede da fabricante das bonecas Monster High. "Ela citava nominalmente que foi convidada pela 'escola Monster High', que só existe no desenho animado da boneca, mas não diz que foi contratada pela Mattel", diz Lívia.

Parte dos vídeos citados nessas primeiras ações já saiu do ar desde então --o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) chegou a advertir o McDonald's em 2017. "O MP deve ter feito uma busca ativa própria para a ação nova, pois nela constam vídeos que não denunciamos", explica a advogada.

Por enquanto, apenas o Google é parte da ação. O Instituto Alana não pretende acionar os canais, pois vê que os apresentadores infantis também estão vulneráveis á influência das empresas anunciantes. Estas também não são citadas, "mas isso não impede de haver outras ações públicas contra as empresas", sugere Lívia.

A ação do MP-SP pede que os vídeos ainda ativos sejam retirados do YouTube para "tutela antecipada", alegando violações a direitos de crianças; e que o Google adote medidas de vigilância e de padrão de uso para impedir o uso do YouTube para publicidade infantil.

Além disso, é sugerido ao Google adotar medidas contra a monetização (remuneração a criadores) de vídeos que violam direitos infanto-juvenis; e que coloque nos termos de uso do YouTube a proibição a vídeos que não obedecem à resolução 163/2014 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), que considera abusiva a publicidade para crianças de até 12 anos.

Além da resolução do Conanda, a ação do MP-SP ancora-se no Código de Defesa do Consumidor, na Constituição, Estatuto da Criança e Adolescente e no Marco Legal da Primeira Infância.

O artigo 36 do CDC diz que a publicidade "deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal". No artigo 39, diz que é proibido "prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade (...) impingir-lhes seus produtos ou serviços". Segundo pesquisas, crianças de até seis anos não distinguem um programa de TV de uma publicidade, e as com até 12 anos não são capazes de perceber o caráter persuasivo de uma propaganda.

A reportagem do UOL viu parte dos vídeos apresentados e alguns deles explicam, na descrição do vídeo ou em uma indicação de texto no canto esquerdo do vídeo, que se tratava de conteúdo pago pela empresa anunciante. Mas a maioria dos vídeos vistos não tinha essa informação.

Outro lado

O UOL procurou os responsáveis pelos sete canais citados. Até a publicação, apenas a do canal Duda MH respondeu, dizendo que o canal não publica mais vídeos novos e não falaria mais detalhes sobre o assunto.

O Google disse que não comenta casos específicos, mas ressaltou, em email enviado após a publicação desta nota, que o YouTube é uma plataforma destinada a adultos e seu uso por crianças deve "sempre ser feito num contexto familiar e em companhia de um adulto responsável". Além disso, quando a empresa não vê violação às políticas de uso, "a análise final sobre a necessidade de remoção de conteúdo cabe ao Poder Judiciário".

A Mattel disse que não vai se posicionar sobre o assunto. Já o McDonald's alegou, via assessoria de imprensa, não trabalhar com youtubers mirns, apesar de vídeos com produtos da rede estarem nos respectivos canais. . 

"Esclarecemos que o McDonald's não trabalha com Youtubers mirins. Nossa comunicação com os consumidores é feita com responsabilidade e segue rigorosos critérios internos e práticas do setor. Por exemplo, em 2016 reafirmamos um compromisso público iniciado em 2009 junto a entidades e empresas do nosso ramo para uma publicidade responsável de alimentos e bebidas para crianças e definimos, entre outras restrições, que não anunciamos em programas, veículos e/ou canais que tenham 50% ou mais de sua audiência composta por crianças menores de 12 anos. Além disso, há 10 anos adotamos voluntariamente um compromisso e código de ética próprios em comunicação publicitária de alimentos."

Foram procuradas ainda o Cartoon Network e Candide (fabricante das LOL Surprises), que não responderam a tempo da publicação. A notícia será atualizada quando elas retornarem o contato.

Histórico

A ação soma-se a um histórico recente do Google envolvendo denúncias de abuso com crianças e adolescentes e polêmicas com publicidade. Em 2016, uma reportagem do UOL sobre a publicidade velada em canais de youtubers mirins levou a uma investigação do procurador Fernando Martins, representante do Ministério Público Federal em Minas Gerais, no conteúdo do canal Bel Para Meninas.

O MPF moveu uma ação contra o Google para retirar os referidos vídeos do ar e que a empresa pusesse avisos no YouTube sobre proibir e denunciar esse tipo de conteúdo, mas em agosto de 2017 o juiz federal Miguel Ângelo Lopes não aceitou o pedido.

Também em 2017, empresas como AT&T, Verizon, Johnson & Johnson, L'Oreal, a farmacêutica GSK e o banco HSBC, entre outras, retiraram seus anúncios do YouTube por aparecerem em vídeos extremistas na plataforma do Google. Quando a empresa endureceu suas regras de monetização em conteúdo impróprio, alguns criadores como o youtuber PewDiePie reclamaram que a receita caiu.

Em outubro do ano passado, o MPDFT (Ministério Público do Distrito Federal e Territórios) instaurou inquérito para investigar como o YouTube tem tratado os dados pessoais de crianças no Brasil. Apesar de determinar que os usuários que acessam a plataforma devem ser maiores de 18 anos, o YouTube é considerado relevante em conteúdo para crianças. Em uma rápida busca no serviço de vídeos, o MP observou que mais de 16 milhões de vídeos aparecem como voltados "para crianças".