Topo

Tráfico de pessoas cresce no Uruguai; fronteira com o Brasil é porta de entrada para vítimas

Rosa Maria Rial e Elaine Neres, vítimas de tráfico sexual no Uruguai - MIGUEL ROJO / AFP
Rosa Maria Rial e Elaine Neres, vítimas de tráfico sexual no Uruguai Imagem: MIGUEL ROJO / AFP

Em Montevidéu

14/11/2018 04h00

Uma pepita de ouro tão pequena quanto uma unha foi o pagamento que a uruguaia Karina Núñez recebeu por oferecer serviços sexuais dentro de uma mina no Chile, aonde um cafetão a levou anos atrás para forçá-la a trabalhar e ficar com quase tudo o que ela ganhava.

Do pouco que restava a esta trabalhadora do sexo de 53 anos, "tinha que pagar 50 dólares pelo canário" que precisava levar com ela, preso em uma gaiola, para saber se havia ar suficiente dentro da mina, onde atendia mineiros em longas sessões de quatro dias e quatro noites.

Karina, que se autodenomina como "liberta", mantém as cicatrizes das surras que levou em seu longo périplo. Mas nada conseguiu dobrar seu espírito rebelde. Esta mulher conseguiu se libertar e há anos se dedica a documentar a situação de outras mulheres com o mesmo destino, tornando-se uma referência tanto para as autoridades quanto para as ONGs que trabalham com o tema do tráfico de seres humanos no Uruguai.

Atualmente, "três em cada dez" prostitutas que atendem nas whiskerias, como são chamados os prostíbulos no Uruguai, são vítimas de tráfico, diz Karina, que por muito tempo exerceu este ofício percorrendo rodovias em seu país. Ela conhece como ninguém o mundo que se move nos arredores dos prostíbulos e assegura que nos últimos anos muitas estrangeiras entraram no negócio, especialmente pela fronteira com o Brasil.

Origem, trânsito e destino

Obelisco marca a fronteira entre Livramento, no Brasil, e Rivera, Uruguai - MIGUEL ROJO/AFP - MIGUEL ROJO/AFP
Obelisco marca a fronteira entre Livramento, no Brasil, e Rivera, Uruguai
Imagem: MIGUEL ROJO/AFP

"Antes éramos um país de origem e trânsito mais do que de recepção. Hoje, somos as três coisas", disse a vice-secretária de Desenvolvimento Social do Uruguai, Ana Olivera, em 30 de julho, Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Algo que já tinha dito em 2010 a relatora especial da ONU Joy Ngozi Ezeilo, após uma visita ao país.

Segundo relatório global para 2018 do Departamento de Estado americano sobre o tráfico de pessoas, o Uruguai é país de origem, trânsito e destino tanto de homens, quanto de mulheres e crianças, que são submetidos a trabalhos forçados e exploração sexual.

Mulheres da República Dominicana e, em menor medida, de outros países sul-americanos, são exploradas sexualmente no Uruguai, assim como as uruguaias adultas e crianças, transgêneros e homens jovens. Outras são obrigadas a se prostituir em Espanha, Itália, Argentina e Brasil, acrescenta o informe, embora ressalte que neste caso, as cifras diminuíram nos últimos anos.

Em uma tentativa de enfrentar o problema, o Parlamento uruguaio aprovou em julho uma lei cujo objeto é combater o tráfico.

A trapaça

Ao "contingente muito grande de mulheres que estão chegando" ao Uruguai, vende-se a ideia de que vêm a "um país dourado", explica Andrea Tuana, da ONG El Paso, que trabalha em convênio com o Ministério de Desenvolvimento Social (Mides) para resgatar vítimas de tráfico.

Dizem-lhes: "Nós te levamos, pagamos a passagem, deixamos um pouco de dinheiro para a sua família. Isso sim, você nos dá uma garantia - se tiver casa, faz uma hipoteca, se não, vemos como [fazer]. Nos primeiros dias, te alojamos".

Mas quando elas chegam, vêm que o paraíso de trabalho não existe. E nessa hora, a rede diz: "'Temos a solução, tem a whiskeria'. E as mulheres cedem ao desespero, à dívida que têm, à família que espera" o envio do dinheiro.

"Não são forçadas fisicamente, não as prendem, nem as acorrentam", mas se não pagarem a dívida, vem a ameaça: "sabemos onde está a tua família".

Para Karina Núñez, trata-se de um círculo vicioso. Embora no Uruguai o trabalho sexual seja legal, os donos das whiskerias estabelecem as jornadas de trabalho e obrigam as profissionais a atender um número determinado de clientes.

"No Uruguai tem muito (proxenetismo encoberto) e o tráfico está preso aí", afirma a senadora e ex-ministra do Interior, Daisy Tourné.

Oculto pelo medo

O tráfico é um crime difícil de detectar e, na maioria dos casos, é cometido com o consentimento das vítimas.

"Não se veem as correntes, mas estão acorrentadas", diz a trabalhadora social Sandra Ortiz, da ONG Casa Abierta, que atende vítimas de tráfico em 15 países.

Para o mexicano Rodolfo Casillas, especialista internacional em tráfico e migrações, pesquisador e professor da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), "a percepção geral é de que este crime está crescendo (no Uruguai): quanto, onde e quais setores afeta, não sabemos".

A juíza Julia Staricco, que processou alguns casos de tráfico no país, afirma que "é muito difícil trabalhar contra este delito" porque "as vítimas não querem depor por medo" de represálias.

Em 2013, um policial foi ferido do lado de fora de um juizado de Montevidéu, onde uma vítima do tráfico se atreveu a depor contra um cafetão. Ao sair do local, um homem atirou nela, ferindo o policial, contou uma das colegas da mulher, que pediu para ter sua identidade preservada.

As autoridades tiveram que disfarçar a testemunha como enfermeira para poder tirá-la do tribunal e levá-la a um hospital, onde ficou escondida por meses.

Há alguns meses, foram soltos dois cafetões "que manipulam o eixo da (zona) leste e estão fazendo uma limpeza e pondo a casa em ordem e está todo mundo assustado (...) Muitas colegas foram embora desses espaços e outras prefeririam morrer a falar", disse a mesma fonte, destacando que ambos são relacionados a Sergio "Zorro" Escobar, um conhecido cafetão, atualmente preso.

Cubanos

Em 2017, a Interpol detectou uma rede de tráfico de cubanos que entram no Uruguai mediante pagamento e após uma penosa travessia pela América do Sul. A rede teria integrantes em Cuba, Guiana, Brasil e Uruguai.

"De onde as cubanas e os cubanos vão tirar 800 dólares para uma passagem, se ganham 20 dólares por mês?", pergunta Maria Elena Laurnaga, socióloga e cientista política, que dirige com a Casa Abierta, na cidade de Rivera, na fronteira norte com o Brasil, um programa piloto sobre tráfico com financiamento dos Estados Unidos.

"Vêm em grupos" e "aqui têm que devolver o dinheiro. Passam pelo Suriname, entram no Brasil" para depois chegar ao Uruguai, acrescenta.

"Em 2017, houve 664 pedidos de visto de cubanos no consulado uruguaio de (a cidade brasileira) Santana do Livramento (vizinha a Rivera), homens e mulheres; este ano, até setembro, já são 1.400, e isto só em Rivera", destaca.

Para tirar a carteira de residente no Uruguai, é preciso pedir visto, o que permite acessar políticas públicas como saúde e previdência social.

"Por trás da história dos cubanos, há uma história do tráfico que se configurou no Brasil ou no Paraguai. Muitos seguem para Montevidéu. Quanto disso é tráfico? Não sei", disse Laurnaga.

Passaram por El Fénix, a principal whiskeria de Rivera, cubanas e dominicanas, mas constantemente são mudadas de lugar, diz Maribel Diniz, uma psicóloga que trabalha com Laurnaga no programa de atendimento a trabalhadoras sexuais em Rivera.

Oscar Borba, chefe da unidade policial contra o tráfico e crimes sexuais desta cidade de 100.000 habitantes, diz ter entrevistado cubanas nesta whiskeria, mas que as supostas vítimas se negam a denunciar.

A favela de 'La Humedad', em Rivera, Uruguai - MIGUEL ROJO/AFP - MIGUEL ROJO/AFP
A favela de 'La Humedad', em Rivera, Uruguai
Imagem: MIGUEL ROJO/AFP

Superposição de redes

"De um tempo para cá, há mais mulheres de importação (...) Os clientes gostam, claro! Chamam sua atenção porque são estrangeiras (...) Vêm do outro lado (Brasil) nada mais para ver, atraem a clientela", diz em uma casa de um bairro periférico de Rivera a ex-trabalhadora sexual Rosa María Rial, de 52 anos, que à noite se fazia chamar "La Gitana" (a cigana).

Em Rivera vê-se também uma superposição de redes criminosas. Segundo Oscar Borba, na cidade fronteiriça há tráfico de mulheres e menores de idade com fins de exploração sexual, além de armas, cocaína, maconha e outras drogas.

"Acontece que tudo é na educação. Você não vai encontrá-la acorrentada e presa no sótão. Tudo é mais psicológico. Quando você se dá conta, a mantêm em uma rede da qual não consegue se libertar", conta a senadora Tourné.