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'O que vamos fazer? Foi embora o único médico que temos', dizem pacientes sobre saída de cubanos

23/11/2018 17h38

A saída abrupta de médicos cubanos do programa "Mais Médicos" no Brasil não foi nada bom para os moradores de Vila Mutirão, um bairro carente de Alexania, em Goiás.

"A saída do doutor Miguel, o único que temos aqui, é um desastre", lamenta Enedina de Oliveira, aposentada 65 anos.

Ela está sentada em frente a sua casa, vendo a manhã passar, a poucos metros do modesto posto de saúde que dá atendimento básico e preventivo a mais de 4.000 habitantes deste município, a 90 quilômetros de Brasília.

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Lá chegou, há dois anos, Miguel Pantoja, um jovem clínico geral de Camagüey (centro de Cuba), como parte do "Mais Médicos", o programa lançado em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff para levar médicos estrangeiros a regiões pobres e rurais do Brasil, já que os médicos brasileiros optavam por não se candidatar a essas vagas.

As coisas mudaram após a eleição de Jair Bolsonaro, que questionou a qualidade dos médicos e a forma como o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) realizou esse contrato com o governo cubano, com a mediação da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Havana então anunciou a retirada de sua missão.

"Vão ter de mandar alguém, se não o que vamos fazer?", exclama à AFP De Oliveira, que tratava seu problema na tireoide com o doutor Pantoja. Ele ainda veste o jaleco branco, pela última vez no Brasil.

Os pacientes o procuram para uma última revisão. Chegam de bicicleta, sob o forte calor do centro do Brasil. Uma mãe lhe entrega seu bebê. Outra paciente o abraça.

Sua partida não é apenas um golpe para Cuba, que tem na exportação de serviços médicos a principal fonte de rendimentos da ilha. É também para o Brasil, em especial para os habitantes dessas zonas, que temem ficar desatendidos após a saída dos mais de 8.000 médicos cubanos.

Uma saída difícil 

Nesta semana o governo abriu uma convocatória interna para substituir as vagas, mas muitos temem que o processo seja lento ou que os médicos brasileiros não queiram trabalhar nessas localidades.

Em Alexania, por exemplo, um município de 30.000 habitantes, tem 10 médicos que realizam o atendimento básico, dos quais seis são cubanos. Outros 20 médicos brasileiros atendem no Hospital Municipal.

Nesta sexta-feira, no entanto, o Ministério da Saúde informou que, na convocatória feita pela internet, 92% das vagas disponíveis já foram preenchidas.

"Com a alta procura e a apresentação imediata do médico ao município, a expectativa é de suprir a ausência do médico cubano com o médico com CRM o mais rápido possível", afirmou o ministro da Saúde, Gilberto Occhi.

No aeroporto de Brasília, dezenas de médicos fazem fila para embarcar, em um êxodo que deve ser concluído em 12 de dezembro. Levam eletrodomésticos e seus animais de estimação.

"Querendo ou não, saímos prejudicados, porque, embora busquemos fazer a redistribuição para que outros médicos atendam, uma parte não poderá ser atendida. É matematicamente impossível", denuncia à AFP o prefeito de Alexania, Allyson Silva Lima. As reclamações de cidadãos de diferentes regiões que ficam sem médicos estão aumentando.

Pantoja é um dos milhares de cubanos destinados às missões médicas que Havana tem há décadas em mais de 60 países, entre eles Equador, Venezuela, Angola e Argélia, um motivo de orgulho para as autoridades da ilha.

No contrato atual, Cuba paga a seus médicos em missão só 30% do que o Brasil desembolsa por seu trabalho, cerca de USD 3.000, mas conserva seus salários e postos de trabalho na ilha e dedica o resto dos lucros ao orçamento estatal.

Mas Bolsonaro, em um movimento muito aplaudido pelos Estados Unidos, denunciou as condições de "escravidão" dos médicos e condicionou sua permanência a que passassem em provas para revalidar seus diplomas, recebessem seu salário integralmente e pudessem trazer suas famílias.

"Em um país onde há muitas gratuidades, é muito difícil sustentar uma economia. Esses 75% vão para universidades, escolas, hospitais que Cuba precisa, porque essa saúde é totalmente gratuita, a universidade também é gratuita", lembra Pantoja.

Ir embora ou ficar

Nos quatro anos de convênio foram reportadas dezenas de deserções, e atualmente cerca de 150 médicos iniciaram ações na justiça para poder exercer a profissão no Brasil.

É o caso de Alioski  Ramírez, que trabalhou em Valparaíso de Goiás (centro-oeste) até 2017, quando foi expulso pelas autoridades de seu país por, segundo ele, tentar negociar contratos particulares com o Brasil.

"Há cubanos dispostos a fazer o que o governo daquela ilha não fez, que foi manter a palavra e o atendimento aos pacientes daqueles lugares inóspitos", declarou à AFP em Brasília.

A Associação Médica Brasileira (AMB), que critica muito o fato de que o convênio não exigisse a revalidação dos diplomas, nega que no Brasil faltem médicos para chegar a todos os cantos do país.

"Falta uma política, um financiamento, uma estruturação adequada para que a medicina brasileira possa exercer em toda sua plenitude aquilo que ela é capaz de fazer, e é uma medicina de muito boa qualidade", explica o presidente da AMB, Lincoln Lopes Ferreira.