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Primavera Árabe continua viva? Dez anos depois, uma 2ª onda de revoltas

16.fev.2020 - Manifestantes iraquianos levantam uma foto do premiê Mihammed Allawi em protesto contra o governo em Nasiriyah, no Iraque - Asaad Niazi/AFP
16.fev.2020 - Manifestantes iraquianos levantam uma foto do premiê Mihammed Allawi em protesto contra o governo em Nasiriyah, no Iraque Imagem: Asaad Niazi/AFP

30/11/2020 06h17

Beirute, 30 Nov 2020 (AFP) - Dez anos depois, muitas das esperanças nascidas da Primavera Árabe parecem ter desaparecido. Mas a segunda onda de revoltas que eclodiu em 2019 demonstra que a chama revolucionária não foi totalmente extinta.

Argélia, Sudão, Líbano e Iraque: quatro países da região pouco afetados em 2011 pela explosão da Primavera Árabe. Mas quatro nações que foram, no ano passado, palcos de poderosos movimentos, às vezes resultando na queda de velhos autocratas. Como um gostinho de déjà vu, com slogans que ecoam os da primeira geração.

Esta nova "onda (...) mostrou que a Primavera Árabe não morreu", comenta à AFP Asef Bayat, especialista em revoluções no mundo árabe.

Esta primavera "conquistou outros países da região, com repertórios de ações coletivas relativamente semelhantes", acrescenta o cientista político.

"Thawra" ("Revolução"), "O povo quer a queda do regime"... Depois da Tunísia, Egito, Síria, Líbia ou Iêmen, as praças de Argel, Cartum, Beirute e Bagdá ouviram os mesmos gritos de guerra, criticando uma distribuição desigual da riqueza e a corrupção de poderes autoritários.

Mesmas causas, mesmos efeitos: queda de governos e presidentes destituídos sob pressão popular.

"2011 deu à luz 2019 e 2019 trará outra onda de protestos", prevê Arshin Adib-Moghaddam, da School of Oriental and African Studies em Londres.

Argélia

As manifestações eclodiram em janeiro de 2011 contra o alto custo de vida. Mas o trauma de uma guerra civil sangrenta (1992-2002) ainda se fazia presente, e o medo de outra descida ao inferno era um poderoso inibidor.

"Acompanhamos com entusiasmo as manifestações na Tunísia, no Egito, na Síria, mas tínhamos medo", explica Zaki Hannache, ativista de 33 anos.

Na época, o governo também tinha uma arma financeira, o petróleo, e acalmava as tensões sociais com a redução de impostos sobre produtos alimentícios.

Em fevereiro de 2019, a situação foi diferente. O descontentamento atingiu seu ápice e, com a queda do preço do petróleo, os cofres se esvaziaram.

Já Abdelaziz Bouteflika, com 80 anos e no poder por duas décadas, estava afásico desde um AVC em 2013.

Seu desejo de ser candidato a um quinto mandato foi visto como uma grande humilhação por uma população que se acreditava resignada.

O dia 22 de fevereiro marcou as primeiras manifestações massivas, que se espalharam de Argel, onde todos os protestos estavam proibidos desde 2001, para o resto do país.

O "Hirak" (movimento) nasceu. O autocrata não demorou a cair: o Exército retirou seu apoio a Bouteflika, que renunciou em 2 de abril.

A saída do "clã Bouteflika" causou euforia. Mas os ativistas sabiam do longo caminho a percorrer: é todo o sistema no poder desde a independência em 1962 que eles querem destruir.

Os protestos semanais continuaram, incansavelmente, por meses. O regime, antes representado pelo chefe do Estado-Maior do Exército, Ahmed Gaïd Salah, não cedeu: organizou-se uma eleição presidencial, apesar da rejeição popular. Produto puro do aparato estatal, Abdelmadjid Tebboune foi eleito.

Apenas a pandemia de covid-19 conteve a mobilização das ruas —em março de 2020, foi suspensa.

Mas apesar da repressão legal, o espírito do Hirak ainda flutua nas ruas de Argel e em Kabylia. E seu caráter profundamente pacífico é elogiado pelos observadores.

Em uma Argélia já devastada por uma guerra civil, os militantes não se esqueceram da Síria, onde os protestos pró-democracia de 2011 deram lugar, sob a pressão da repressão, a um conflito sangrento.

"Aprendemos lições com a Primavera Árabe", resume Hannache. "Aprendemos que a única opção era preservar o caráter pacífico do movimento".

Iraque

Quando a Primavera Árabe estourou, o Iraque estava há muito tempo livre de seu próprio homem forte, uma vez que a invasão americana derrubou Saddam Hussein em 2003. Sua queda foi seguida por um conflito sectário sangrento.

"Vimos nas revoltas da Primavera Árabe uma oportunidade de salvar a democracia no Iraque", observa Ali Abdulkhaleq, ativista e jornalista de 34 anos.

Em fevereiro de 2011, ele participou da criação do movimento "Juventude de fevereiro", que organizou manifestações semanais em Bagdá, denunciando o governo de Nouri al-Maliki.

"O povo exige uma reforma do regime", gritou a multidão, ecoando os slogans do Cairo e de Túnis —sem, no entanto, exigir a queda do poder.

O movimento perdeu força em poucos meses, mas "as pessoas perceberam que protestar era uma possibilidade", diz Abdulkhaleq, segundo o qual "a raiva iraquiana foi liberada".

Protestos abalaram esporadicamente o país, até a explosão de revolta em outubro de 2019.

O levante se espalhou por todo o país, desta vez exigindo uma mudança de regime e forçando o governo de Adel Abdel Mahdi a renunciar.

Após meses de mobilização massiva, o movimento perdeu força, com uma repressão implacável —quase 600 manifestantes mortos— e a nova pandemia de coronavírus.

Mas "os parâmetros que poderiam provocar uma nova revolução ainda estão vivos", avisa Abdulkhaleq.

Sudão

A partir de 2011, jovens ativistas se organizaram para lançar pequenas manifestações, aqui e ali, apesar das prisões.

Porque Omar al-Bashir controlava desde 1989 com mão de ferro um país em extrema pobreza, dilacerado por repetidas guerras civis, diplomaticamente isolado e sem oposição política.

Em 2013, quando Cartum removeu os subsídios ao petróleo, eclodiram os protestos, que acabaram reprimidos de forma sangrenta.

"A rua se resignou, apesar do início do colapso econômico", indica o ativista Mohamed al-Omar. Mas "o círculo de oposição ao regime começou a se ampliar", continua Omar, que conheceu a prisão por seu ativismo.

Cinco anos depois, em dezembro de 2018, a triplicação do preço do pão provocou novos protestos. Essa mobilização foi pra frente.

Em 11 de abril de 2019, Omar al-Bashir, um ex-militar que chegou ao poder por meio de um golpe, foi colocado em prisão domiciliar pelo Exército.

Como na Argélia, a luta continuou para obter o desmantelamento do aparato estatal. Ilustrando uma transição tempestuosa, um sit-in de vários meses em Cartum com o objetivo de pressionar os militares governantes foi brutalmente dispersado em 3 de junho.

Dezenas de pessoas foram mortas, aumentando o temor do retorno de uma contra-revolução, semelhante à vivida no Egito após a Primavera Árabe de 2011.

Mas o efeito contrário se produziu: sob pressão, o exército acabou firmando um compromisso com o movimento de protesto em agosto. O país estabeleceu um Conselho Soberano Conjunto para supervisionar uma transição de três anos para um governo civil.

Citando em particular o papel-chave dos sindicatos, Omar julga que "o movimento no Sudão foi muito mais organizado" do que a maioria dos levantes da Primavera Árabe.

Líbano

No Líbano, com um regime político que deveria garantir a divisão do poder entre diferentes comunidades religiosas, as mesmas famílias assumiram o controle da esfera pública por décadas.

A classe política seguia dominada pelos senhores da guerra civil de 1975-1990. "Quando vi que na Tunísia e no Egito havia mudança, me perguntei: 'Por que isso não aconteceria no Líbano?'", lembra Imad Bazzi, cujo engajamento político remonta ao fim da década de 1990.

Em fevereiro de 2011, desempregado, ele participou da organização de manifestações, mas sem mudanças reais.

Mas a revolta estava apenas adormecida em um Líbano submetido a crises políticas, minado por disparidades crescentes de riqueza.

Em 2015, o acúmulo de lixo nas ruas de Beirute, devido à má gestão, gerou manifestações denunciando toda a classe política.

Em outubro de 2019, a centelha da "revolução" finalmente pegou.

O gatilho? A adoção pelas autoridades de um novo imposto sobre o uso do WhatsApp, em um país que demonstrava os primeiros sinais de colapso econômico.

"Thawra!": Durante semanas, os manifestantes saíram às ruas para exigir a saída de uma classe política considerada corrupta e incompetente. Às vezes, eram centenas de milhares, de todas as religiões, um motivo de orgulho neste país fragmentado.

Sob pressão, o primeiro-ministro Saad Hariri renunciou. Mas, um ano depois, os mesmos políticos ainda estão agarrados ao poder.

Pior, os males - corrupção, incompetência - vilipendiados pelos manifestantes encontram uma concretização dramática na explosão de 4 de agosto no porto de Beirute, onde uma enorme quantidade de nitrato de amônio havia sido armazenada por anos, independentemente dos riscos.

Em outubro, ninguém menos que Hariri foi novamente nomeado para liderar um novo governo.

Para os militantes, apesar da falta de ar, o levante ainda não foi derrotado.

"É um processo contínuo", assegura Bazzi. "As ondas vêm, uma após a outra, estão todas conectadas".