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Raio-x da ONU apresenta Brasil como país com 'discriminação estrutural'

Haitianos e imigrantes protestaram na avenida Paulista contra a xenofobia e o racismo no Brasil - Renato S. Cerqueira - 1º.nov.2015/Futura Press/Estadão Conteúdo
Haitianos e imigrantes protestaram na avenida Paulista contra a xenofobia e o racismo no Brasil Imagem: Renato S. Cerqueira - 1º.nov.2015/Futura Press/Estadão Conteúdo

Jamil Chade, correspondente

De Genebra

20/04/2017 20h00

Um país com uma discriminação estrutural, intolerante, com altas taxas de violência e até com seu caráter secular ameaçado por pressões de grupos e bancadas religiosos dentro da política. Esse é o panorama que relatores da ONU traçam sobre Brasil, no momento em que o governo começa se preparar para ser sabatinado nas Nações Unidas sobre a situação dos direitos humanos no País.

Governos de todo o mundo são obrigados a passar por uma Revisão Periódica Universal, um mecanismo criado nas Nações Unidas para examinar todos os aspectos de direitos humanos nos países de forma regular.

Para se preparar para o questionamento, a entidade elaborou um raio-x completo sobre a situação brasileira nesse período desde o último exame do País, em 2012. No documento, ela compila os resultados de investigações de relatores independentes, grupos de especialistas e missões realizadas no País nos últimos cinco anos. As conclusões apontam para sérias violações.

Uma das preocupações dos relatores da ONU se refere à situação da discriminação e desigualdade "estruturais" na sociedade. Apesar de diversos avanços sociais, o informe insiste que "milhões de pessoas continuam a viver em ambientes insalubres, sem acesso à água e saneamento". Os maiores problemas estariam nas regiões Norte e Nordeste. No caso da saúde, o relatório também aponta como "desigualdades impedem que as populações mais vulneráveis tenham acesso efetivo aos tratamentos de saúde".

Segundo a entidade, relatores alertaram para a situação dos homossexuais no País. De acordo com o informe, ainda que o Brasil "não criminalize atos homossexuais, relatos indicam que ele tem um dos maiores níveis de violência contra lésbicas, gays e bissexuais".

Os relatores afirmam estar preocupados com a remoção de estratégias que tinham como objetivo eliminar a discriminação baseada na orientação sexual e raça de planos educacionais em alguns Estados.

"O Brasil não tomou medidas necessárias para combater a discriminação estrutural contra esse grupo", alertou.

Se o Brasil adota uma postura de liderança no cenário internacional quando fala dos direitos dos homossexuais, a ONU alerta que a realidade doméstica ainda é de problemas. "O Congresso criou desafios adicionais aos direitos de lésbicas, gays, bissexuais", indicou. Segundo a entidade, ganha apoio entre deputados e senadores ideias que excluam esse grupo do conceito de estatuto da família, enquanto chega a ser proposto o dia do orgulho heterossexual.

Religião

Essas propostas no Congresso também apontariam para outro fator que vem preocupando os relatores da ONU: "a dominância cada vez maior de certos grupos religiosos e que

O documento cita iniciativas legislativas e até de emendas constitucionais dando mais poder a associações religiosas e a possibilidade de desafiar a constitucionalidade de certas leis.

O relatório não cita os nomes dos grupos religiosos envolvidos nessa concentração de poder. Mas indica que a entidade está ainda preocupada com "o assédio, intimidação e até violência contra pessoas de religiões afro no Brasil, incluindo a vandalização de locais de culto".

No documento que serve de referência para o informe que será apresentado em maio, a ONU usa os dados coletados pela relatora especial Rita Izsák. Em seu levantamento de fevereiro de 2016, ela aponta como membros de religiões afro tem visto os grupos evangélicos como uma ameaça à liberdade religiosa. "Muitos frequentadores de terreiros apontam que são assediados por evangélicos, incluindo por esforços de conversão agressiva e a distribuição de panfletos em locais de culto".

Negros

Um dos temas centrais que será debatido na sabatina é a violência "generalizada" e muitas vezes cometidas pela Polícia Militar e forças de segurança contra minorias. Mas nos dados compilados, a entidade deixa claro que está preocupado com a dimensão racial dessa violência. "Dos 56 mil homicídios que ocorrem a cada ano, 30 mil envolvem vítimas de 15 a 29 anos de idade, dos quais 77% são afro-brasileiros", diz.

Usando outro dado do Grupo de Especialistas sobre Povos de Descendência Africana, o informe alerta para o foco excessivo da violência policial contra negros. O mesmo grupo ainda destaca que essa mesma população está "sobre-representada em empregos de baixa qualificação e nas prisões". O informe também denuncia o número baixo de mulheres negras em posições de poder e a "desigualdade persistente em termos de acesso a empregos".

No que se refere à pobreza, o documento aponta que ainda são os afrodescendentes os mais afetados. De 16 milhões de brasileiros que vivem em extrema pobreza, 70% são negros.

Os relatores da ONU admitiram que houve um progresso econômico "significativo" no Brasil nas últimas décadas. "Mas enquanto programas como Minha Casa, Minha Vida e Bolsa Família ajudaram muitas das comunidades, a desigualdade para afro-brasileiros continuou".

O que preocupa ainda os relatores da ONU é que os planos de congelar gastos públicos por 20 anos são "incompatíveis com as obrigações de direitos humanos do país", principalmente diante desse cenário ainda de desigualdade.

Uma situação de desigualdade também é registrada na educação. De acordo com o informe, 64% dos afrobrasileiros não completam a educação básica. Segundo a Unesco, ainda que o Brasil tenha aumentado de forma "significativa os investimentos em educação na última década, o País ainda enfrenta desafios maiores no financiamento da educação".

 

O relatório também aponta que "ainda que ações afirmativas tenham sido implementadas com sucesso no Brasil, as desigualdades raciais persistem no sistema educacional". "Se as cotas inicialmente permitiram o acesso à educação universitárias, os custos associados a isso ainda tornam a educação difícil aos estudantes", aponta. Com base nos informes do Grupo de Trabalho, o relatório aponta que existem ainda preocupações sobre o treinamento de professores e a oposição a ensinar a cultura afrobrasileira nas escolas.

Outro grupo que sofre também são os indígenas. Para os relatores da ONU, existe um "fracasso do estado em proteger as terras desses povos de atividades ilegais", enquanto os cortes de orçamento na Funai podem representar uma ameaça.

Tortura

Na sabatina, o governo brasileiro ainda terá de responder pela situação das prisões brasileiras. De acordo com o informe, existe um "consistente e repetido" cenário de tortura por parte da polícia, além da falta de independência de institutos médicos forenses.

Em um esforço para lidar com a crise nas penitenciárias, os relatores da ONU sugerem a ampliação de penas alternativas. "A falta de saneamento e superlotação transformaram as prisões em locais onde a prevenção de doenças é um desafio permanente", disse.

Lembrando de massacres em prisões em janeiro deste ano, o documento também aponta como os relatores estão "profundamente preocupados com os incidentes de extrema violência, incluindo homicídios, entre detentos".