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Fora do Brasil, repórter ameaçado por 'policiais' relata mudança brusca de vida

Luis Kawaguti

Em São Paulo

12/12/2012 07h51

Após escrever uma reportagem em julho relatando que o ex-comandante da Rota (a controversa unidade de elite da Polícia Militar de São Paulo) e vereador eleito Paulo Telhada usava sua página no Facebook para pregar a violência, o repórter André Caramante, do jornal Folha de S.Paulo, passou a ser alvo de ameaças que o levaram a deixar o país com a família.

Com os filhos fora da escola regular e longe dos amigos e da profissão, o jornalista espera providências das autoridades, que ainda não identificaram os autores de ameaças como: "Quero deixar um recado para o André Caramante. Para ele deixar a polícia trabalhar em paz ou os filhos dele vão estudar no tacho do inferno", feita por telefone a um funcionário da Folha de S.Paulo, segundo o Ministério Público.

Segundo o advogado de Telhada, as ameaças não partiram dele - que pediu pela internet apenas que seus simpatizantes escrevessem ao jornal em atitude de "desagravo" à reportagem. Porém, o pedido deflagrou a perseguição ao repórter feita por supostos policiais que equiparam a defesa dos direitos humanos à proteção a bandidos.

O episódio mostrou, contudo, que Caramante não está sozinho. Ele tem o apoio de diversas organizações não-governamentais, entidades de classe e movimentos sociais. Na última segunda-feira, recebeu o Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo - devido não só à reportagem de julho, mas a um trabalho sistemático de denúncia de abusos de direitos humanos no país.

Na terça-feira, a ministra Maria do Rosário, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, escreveu em sua conta no Twitter que Caramante, "que denuncia impunidade e violência" em São Paulo, "deve poder trabalhar livre de ameaças". Ela afirmou também que o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana reforçará o apoio aos jornalistas.

Leia abaixo trechos da entrevista de Caramante à BBC Brasil. Veja também o "Outro lado", com as reações do advogado do coronel Paulo Telhada, da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar às declarações do jornalista.

BBC Brasil - Que tipo de ameaças você recebeu após a publicação da matéria sobre o coronel Paulo Telhada?

André Caramante - Por telefone, ameaçaram minha família. Pela internet, houve uma onda de ameaças e intimidações em redes sociais, blogs e até no próprio site do jornal Folha de S.Paulo, na seção de comentários. Entre as mensagens, fui chamado de "bandido". Disseram coisas como "bala nele", "você ainda será vítima de um sequestro relâmpago", "quando apontarem uma arma para você..." e, ironizando, "espero que nada de mau te aconteça". Esta onda teve grande força por mais de um mês, e seguiu forte até outubro.

O coronel me chamou publicamente, no Facebook, de "notório defensor de bandidos" e pediu uma mobilização contra mim. Houve incitação de pessoas para que denegrissem meu trabalho e deflagrou-se uma onda de intimidações e de incitação à violência contra mim e contra o jornal.

As ameaças e intimidações na internet estão ligadas, em sua maioria, a alguns policiais, por meio de declarações próprias, e simpatizantes. Em relação aos atos fora da internet, até o momento, não é possível apontar um autor.

BBC Brasil - A defesa do coronel diz que ele nunca falou com você... 

Caramante - Esse mesmo coronel da PM reformado, eleito vereador, é alguém que durante seu trabalho na Polícia Militar assume ter matado 36 pessoas - todas "dentro da lei", segundo afirma. Na tentativa de desmoralizar meu trabalho na Folha de S. Paulo, ele disse nunca ter falado comigo. Não é fato. Já fiz reportagens sobre a Rota quando era comandada por ele.

Conversamos para que ele pudesse oferecer sua versão sobre uma suspeita de que seus subordinados haviam feito uma emboscada na qual seis suspeitos de tentar roubar caixas eletrônicos em um supermercado foram mortos. Existe a suspeita de que a operação policial teve a oportunidade de prender os suspeitos, mas eles foram mortos. Isso aconteceu em agosto de 2011.

BBC Brasil - Qual foi o impacto de tudo isso para você e para a sua família? Estão no exterior?

Caramante -
Sim, atualmente estamos no exterior. Ao contrário do que tentaram dizer, não considero que eu e minha família passamos a viver escondidos e sim que mudamos temporariamente nossa localização. Isso por causa das ameaças de morte e fatos que consideramos suspeitos, relacionados por exemplo a chamadas telefônicas, à presença de motocicletas durante percursos em trajetos iguais aos meus e ao levantamento de informações de parentes meus por policiais.

BBC Brasil - Como foram as mudanças na sua vida pessoal? Está pensando em voltar logo?

Caramante -
Toda mudança de rotina, ainda mais esta, brusca e imposta, traz transtornos e desafios. Meus filhos tiveram seu processo de aprendizado regular interrompido. Minha companheira mudou completamente sua rotina. Hoje, parte de nossa vida é transportada em malas de viagem. A comunicação com amigos e parentes é bem restrita.

Continuo trabalhando à distância, mas sinto a angústia de não poder exercer plenamente minha profissão. Repórter tem mais é que sujar os sapatos atrás da notícia, tem de estar nas ruas, estar em contato direto com as fontes de informação.

A avaliação sobre o meu retorno, juntamente com minha família, será feita em conjunto com a direção da Folha de S.Paulo. Desde o início desse período de maior pressão, tudo tem sido decidido em conjunto com o jornal, afinal, o que aconteceu também foi uma tentativa de atentar contra o direito de informar.

BBC Brasil - Como se sente nesta situação?

Caramante -
Essa tentativa de intimidação contra a liberdade de imprensa não é nova e não se restringe apenas a mim. No México, por exemplo, as pressões contra a imprensa livre são exercidas pelo narcotráfico. No Brasil, mesmo após o fim da ditadura militar, há quase 30 anos, as indicações são de que setores das forças de segurança tentam impedir a divulgação de informações.

Posso citar dois exemplos, cada um com seu grau de intensidade, mas ainda assim semelhantes por terem PMs como alvo de denúncia: o do jornalista Caco Barcellos, autor do livro-reportagem Rota 66 - A História da Polícia que Mata, ameaçado de morte e obrigado a deixar o país nos anos 1990 por mostrar a política de extermínio da tropa especial da PM de São Paulo.

E também o do jornalista Renato Santana que, em 2011, após denunciar grupos de extermínio na região do litoral paulista, passou a ser ameaçado e teve de pedir demissão do jornal para o qual trabalhava e se mudar.

BBC Brasil - O governo estadual poderia ter feito alguma coisa para evitar essa situação, ou pode tomar alguma atitude agora?

Caramante -
Depois de a notícia sobre minha mudança temporária de localização ter sido tornada pública, o governador Geraldo Alckmin propôs me colocar, ao lado de minha família, no programa estadual de proteção a vítimas e testemunhas. Mas isso não atendeu a minha expectativa, porque faria com que eu tivesse de abrir mão de minha atividade profissional, do direito de informar.

(O programa) faz com que um jornalista tenha de deixar de exercer seu trabalho, rompa laços de amizade, mude de casa ou até mesmo de nome, mas não diz nada sobre como responder à ameaça contra a liberdade de imprensa que a minha situação expôs.

No fim de julho, o secretário da Segurança Pública do governador Alckmin já havia afirmado que iria determinar uma investigação na Corregedoria da PM contra o coronel reformado sobre as atitudes dele contra mim no Facebook. Até hoje não fui informado sobre o resultado dessa investigação. Somente dois meses depois dessa afirmação, a Corregedoria da PM, sabendo que eu já estava fora do país, enviou um ofício ao jornal para me ouvir. Fica muito difícil acreditar em resultados. Afinal, havia uma investigação em curso no fim de julho?

BBC Brasil - Qual é a sua opinião sobre o posicionamento do governo Alckmin?

Caramante -
Se tivéssemos uma política de segurança pública transparente em São Paulo, o governo manteria de forma explícita, por exemplo, uma lista completa com todos os dados das vítimas dessa onda de violência em andamento. Em São Paulo, jornalistas não têm acesso a documentos públicos sobre esses crimes. A desculpa é a de que a revelação sobre quem morreu "atrapalharia as investigações".

BBC Brasil - Como vê essa atitude do governo do Estado de trocar cúpula e aceitar ajuda federal?

Caramante -
Diante da atual onda de violência enfrentada pela população de São Paulo, a mudança no comando da Segurança Pública e o recebimento de ajuda do governo federal eram medidas cujo adiamento seria muito difícil justificar. O novo comando chega com a necessidade de apresentar resultados urgentes à população, que espera voltar a confiar plenamente nas instituições governamentais, nas leis. A população não pode temer suas polícias e nem viver sob a pressão de criminosos. Essa mesma população quer afastar o fantasma do estado de exceção que assombra as periferias, onde se atropelam direitos fundamentais.

BBC Brasil - Você recebeu apoio de alguma instituição?

Caramante -
Recebi a solidariedade de familiares, amigos, de entidades de classe, estudantes, colegas de profissão e de organizações que defendem os Direitos Humanos e a Liberdade de Imprensa, como Repórteres Sem Fronteiras, SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa), Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), Instituto Vladimir Herzog, Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, S.O.S. Racismo (Assembleia Legislativa de SP), Condepe (Conselho de Defesa da Pessoa Humana de SP), Comitê Paulista Pela Memória, Verdade e Justiça, e também das ONGs Justiça Global, Conectas, Instituto Sou da Paz.

Membros do hip hop e da cena cultural da periferia de São Paulo, como a Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), estenderam as mãos e isso tem muito valor, assim como o incentivo que sempre me foi dado pelo grupo independente Mães de Maio, composto por familiares de jovens mortos durante o primeiro grande enfrentamento entre o crime organizado e as forças de segurança, em maio de 2006.

Outro lado

O advogado de defesa do coronel Paulo Telhada, Israel Alexandre de Souza, afirma que o perfil do Facebook analisado pela reportagem de André Caramante e pelo Ministério Público era falso.

De acordo com Souza, a página em questão era uma homenagem a Telhada e não seria de autoria dele. "Eu consigo provar que não foi ele quem postou", afirmou o advogado.

"O coronel tem uma página com 100 mil seguidores no Facebook em que ele publica as posições dele. E a posição dele é de combate ao crime, mas ele não publica incitação à violência."

O caso levou o Ministério Público a pedir à Justiça Eleitoral a cassação do registro de candidatura de Telhada por usar indevidamente meios de comunicação social. O processo foi extinto em primeira instância, mas os promotores recorreram.

Em relação à alegação de que Telhada teria chamado Caramante de "notório defensor de bandidos", Souza afirma: "O coronel 'postou' na página dele dizendo que esse cara perseguia ele. Pode ter dito isso, não tenho certeza. O que ele pediu para os seguidores dele foi que mandassem e-mails de desagravo ao jornal o defendendo."

O advogado diz que a ação do coronel foi "uma atitude cívica de liberdade de expressão", mas afirmou acreditar que se Telhada soubesse com antecedência da repercussão do caso não teria publicado a mensagem.

Souza acrescentou que os seguidores do vereador "podem ter exagerado no desagravo". "Não acredito nem que sejam ameaças reais, mas não deixam de ser crime e deveriam ser apuradas pela polícia", afirma.

Além do processo na Justiça Eleitoral, o caso é investigado pelo Grupo Especial de Controle Externo da Atividade Policial (GECEP) do Ministério Público do Estado de São Paulo.

A Secretaria de Segurança Pública afirma que não há falta de transparência na pasta, "fato comprovado pelo fato de São Paulo ser o único Estado do País que divulga as estatísticas criminais mensalmente, e com regularidade".

"Quanto aos boletins de ocorrência, eles não são divulgados integralmente para preservar as partes e não atrapalhar as apurações", acrescenta a secretaria. "Quanto aos crimes, todos estão sendo investigados e todas as hipóteses, inclusive o suposto envolvimento de policiais, são consideradas nas apurações." "O Governo do Estado de São Paulo e o novo secretário de Segurança, Fernando Grella Vieira, são os maiores interessados em elucidar os casos."

A Polícia Militar afirmou que uma investigação sobre as ameaças ao jornalista "está em andamento".

"Estamos na fase de processamento de autoria dessas supostas ameaças, como o objetivo de individualizar a suposta conduta, descobrindo os supostos motivos da ameaça, atribuir uma penalidade administrativa militar e abrir um procedimento para avaliarmos sua conduta na esfera penal (Inquérito Policial Militar)", disse a entidade em nota.