'Não imaginava que fosse dormir com fome no Brasil', diz refugiada do Congo
Por dois dias, a reportagem da BBC Brasil acompanhou aulas de português concedidas a refugiados na sede da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, no bairro do Maracanã, zona norte da cidade.
Mesmo com o calor registrado nos primeiros dias de março, crianças e adultos, em sua maioria provenientes da República Democrática do Congo, lotavam a varanda transformada em sala de aula para aprender as primeiras palavras da língua do país que os acolheu.
Em comum, todos pareciam sentir um alívio por terem saído de uma situação que muitos descreveram como "infernal" em seu país. Mesmo assim, eles se mostravam preocupados com os meios para se sustentar no Brasil.
A maior parte dos entrevistados, no entanto, parecia esperançosa e dizia esperar passar o resto de suas vidas no Brasil. Confira agora alguns dos depoimentos de refugiados e solicitantes de refúgio congoleses. Para evitar a identificação, seus nomes foram substituídos por outros fictícios.
Pierre*
"Sou de Kinshasa. Estou aqui há quase cinco meses. Ainda não saiu meu refúgio.
Eu fugi da guerra na minha terra, porque era membro de um partido, eu fugi por causa dessas coisas de política. Se ficasse lá podiam me matar. Antes de fugir, eu estava preso. Depois consegui fugir e arranjei uma maneira de chegar aqui no Brasil.
Não vim porque gostasse antes do Brasil, eu estava precisando de um lugar onde eu pudesse viver em paz, por isso fiquei aqui.
Mas, desde que eu cheguei aqui, não está nada bom. Estou sozinho aqui. A gente fugiu do sofrimento, mas aqui está no fogo, dentro do sofrimento.
Aqui não há consideração pelos refugiados. Se você solicita um trabalho em qualquer lugar e apresenta os documentos que mostram que você é refugiado, eles não deixam trabalhar.
O brasileiro pensa que o refugiado é um homem que matou no país dele e fugiu para cá, mas não é. O refugiado é uma pessoa que estava sofrendo na terra dele e fugiu para viver uma nova vida."
Carlos*
"Eu fazia parte de um partido político opositor. A gente começou a fazer manifestação e isso causou problema para nós. Eu sou enfermeiro formado e trabalhava como socorrista. Muitos de nós foram presos e outros foram executados. Aí começou a dar muito medo.
Eu decidi vir para o Brasil porque era o caminho mais fácil para conseguir o visto. Hoje, no país da gente, para conseguir o visto da França ou Canadá, é muito difícil, então o Brasil foi mais fácil. O Brasil abriu as portas.
Demorei mais ou menos dois anos para conseguir trabalho. São essas as maiores dificuldades que a gente tem."
À primeira vista, as pessoas recebem muito bem a gente, com muito calor. São curiosos, fazem muitas perguntas. Tem também outros que têm preconceito. O fato de que a gente é da África já faz com que muitos tirem a conclusão de que a gente é traficante, não sei por quê.
Pessoalmente, esse negócio de preconceito é muito difícil ter certeza. As pessoas fazem isso com muita inteligência, para não parecer ser racista, entendeu? É muito difícil.
Uma vez, o que eu percebi foi na Cinelândia. Eu estava andando normalmente e tinha uma moça na minha frente. Ela se assustou do nada e começou a fugir. Mas isso não tem nada a ver com o fato de eu ser refugiado...acho que ela não sabia que eu sou estrangeiro, é por causa de ser negro. É uma coisa séria ser refugiado e também (ter) a cor da gente, os refugiados brancos acho que não encontram as mesmas dificuldades que a gente.
Eu desejo fazer a minha vida aqui. Eu vivo com uma brasileira, penso em ter um filho com ela, então viver feliz aqui, porque não é muito diferente da minha terra não."
Pascal*
Cheguei no Brasil há três meses. Estou estudando português, eu era militar, tenho facilidade porque militar tem que estudar outras línguas. Sou carioca, um antepassado morou aqui, ele veio para cá como escravo e depois voltou para o Congo. Por isso eu sou carioca.
Uma pessoa me ajudou, me trouxe aqui. Ele falou "vamos para a América", eu achei que estivéssemos indo para os Estados Unidos da América. Mas ele me deixou aqui, por isso eu estou estudando.
Aqui estou morando na Central do Brasil. Estou alugando minha casa, porque aqui (na Cáritas) me ajudam, mas o dinheiro daqui às vezes não vem no tempo, às vezes fica dois meses sem vir. Aqui me pagam R$ 300. Só dá para pagar o quarto.
Estou procurando emprego para trabalhar Se Deus permitir, eu não quero mais voltar para o Congo não, eu sou carioca.
Estou vendendo água (como camelô) para pagar a casa, mas os guardas me perturbam muito."
Ben*
"Estou há seis meses no Brasil. Eu morava perto de Goma, na Província do Kivu do Norte (no Congo). Lá a situação está muito complicada. A minha esposa foi baleada e morreu e eu fugi para Uganda, onde consegui o documento para vir para cá para o Brasil.
A vida aqui para o refugiado é muito complicada. Chegamos aqui e não tem casa. A gente paga aluguel e é muito caro. Um quartinho, um quitinete, é R$ 400, R$ 300, mas aqui (na Cáritas) nós recebemos R$ 300.
Eu moro na favela. Tem outros congoleses perto, mas eles não podem me ajudar, eles também têm dificuldades.
A favela é muito complicada, mas a gente tem que acostumar. É muito complicado, o barulho de tiro, fica complicado para nós.
Estou feliz (de estar aqui). Eu cheguei há pouco, demora até a gente se acostumar com o país, mas vai dar certo. Vou ficar aqui, com certeza."
Angelica*
"Nasci em Kinshasa, na capital (da República Democrática do Congo). Eu era estudante e fui fazer um estágio em um orfanato. Lá havia pessoas traficando crianças. Eu sabia que lá tinha tráfico de crianças e queria denunciar, mas começou uma confusão, me ameaçaram.
Eu moro na casa de um outro congolês, em uma favela de Brás de Pina. A maior dificuldade é a língua, que é um pouco difícil.
Eu moro na favela, pode ter algum problema. Tem muitos tiros lá, eu ouço muitos tiros. Eu tenho vontade de sair de lá.
Não posso voltar para o Congo, porque as pessoas que me ameaçaram estão lá.
Eu vim sozinha para cá, é muito difícil. Mas, mesmo assim, quero ficar aqui pra sempre. Estou alegre porque não estou mais me sentindo ameaçada.
Camille*
"O país (Congo) não está bom, está em guerra. Foi uma grande história para chegar aqui. Eu vim de avião, uma pessoa me ajudou. Fizeram documentos falsos. Mas, depois que cheguei, a pessoa me deixou na rua com as crianças e foi embora. Tive que dormir na rua no primeiro dia com as três crianças.
Tenho três filhos. O primeiro tem 9, essa tem 3 e um bebê que nasceu aqui e tem três meses. Não tenho ninguém que possa me ajudar, estou sozinha. Se não fossem os vizinhos, não sei como seria minha vida. O dinheiro (que ganho da Cáritas) só dá pra pagar o aluguel da casa.
Eu estou triste porque meus filhos não têm leite para tomar, as outras estão com fome. Eu não tinha idéia de que no Brasil seria ruim assim, eu não imaginava que um dia fosse dormir com fome no Brasil."
*Nomes fictícios
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