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40 anos após golpe militar, Chile vive crise de maturidade

Roberto Brodsky

11/09/2013 05h59

Quarenta anos após o golpe de Estado que em 1973 derrubou o governo socialista de Salvador Allende e deu início a um governo militar de quase duas décadas, o Chile vive o que um psicoterapeuta poderia descrever como uma crise de maturidade.

Os sintomas são visíveis.

No país, não há certeza quanto aos caminhos tomados, o desapego ante as instituições permanece e a classe política está desacreditada depois de 20 anos de administração abusiva do modelo neoliberal.

Nas ruas se discute o futuro como algo disperso. As decisões tomadas no passado são vistas com suspeita, às vezes com receio. O presente ainda traz marcas de velhas feridas e traumas não resolvidos. Até o censo nacional foi anulado após sérias deficiências em sua realização terem sido constatadas. Os chilenos não sabem quantos são em número, não têm uma referência atualizada de suas conquistas, nem tampouco sabem o que consomem nem até onde se dirigem.

Talvez por isso reclamar voltou a ser uma prática cotidiana.

Até mesmo pequenos povoados como Tocopilla, no norte, ou Aysén, no sul, lembram Fuenteovejuna (obra do dramaturgo espanhol Lope da Vega). A população reivindica um Estado responsável, no qual os benefícios do crescimento econômico cheguem a todo o país.

Fim do consenso

Após a revolta de 2011, quando milhares de estudantes saíram às ruas exigindo o fim do lucro na educação, o consenso que havia regido o Chile desde o retorno à democracia em 1990 terminou.

O mesmo consenso que a classe política tinha usado como desculpa e escudo para justificar muitas de suas decisões. Ninguém mais parece disposto a reduzir suas demandas para salvá-lo.

Se a nível regional o Chile se destacava como um modelo a seguir quanto à estabilidade política, força econômica, disciplina fiscal, ampliação de oportunidades e crescimento das classes médias, hoje o país mostra seus limites, contradições e pressupostos de sustentabilidade.

"Os movimentos sociais de 2011 acabaram com a estrutura transicional, porque tiraram dele sua premissa: a política deveria ser de baixa intensidade para ser suportada pelas instituições pós-ditatoriais", assegura o sociólogo e acadêmico Alberto Mayol, colunista do site de notícias El Mostrador.

Crise de disciplina

Surpreendentemente, tudo isso coincide com uma data matricial na história da pátria: os 40 anos do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973.

Quarenta anos é, com efeito, um número redondo para a crise. Há quatro décadas, um pai disciplinador decidiu acabar com a velha ordem republicana e aplicar uma política de choque neoliberal para recriar o país econômica e institucionalmente. Sua premissa de êxito então era uma só: disciplina, uma palavra perante a qual, atualmente, ninguém está disposto a dobrar-se.

Pelo contrário.

Não é de estranhar então que em meio à falta de consenso a memória bata recordes de audiência na TV aberta. O programa Imagens Proibidas, no qual se apresentam a cada quarta-feira as desaparecimentos, mortes e torturas ocorridas sob o regime de Pinochet, ganhou em audiência da série Solteira outra vez, que até então era imbatível na preferência dos espectadores.

Há duas semanas, o programa de TV El Informante colocou o ex-comandante militar Juan Emilio Cheyre diante de uma vítima de sérias violações de direitos humanos, Ernesto Lejderman, que aos dois anos de idade perdeu seus pais, fuzilados por uma patrulha militar sumariamente, após o golpe de Estado.

No momento da transmissão do programa, Cheyre trabalhava como diretor do Serviço Eleitoral. No dia seguinte, teve de renunciar ao cargo após acusações de cumplicidade, encobrimento e por ter mentido em um episódio do qual foi testemunha direta, já que ele mesmo foi entregar o menino órfão, Ernesto Lejderman, hoje com 42 anos, a um convento de freiras para seu cuidado.

O impacto do programa foi viral, como se os chilenos pela primeira vez tivessem se permitido chorar, arrepender-se, sentir raiva ou pedir perdão.

Dias depois, o senador Hermán Larraín, do partido de extrema-direita UDI, apoiador do regime militar, se arrependeu publicamente de ter ignorado as denúncias de familiares e vítimas da repressão.

Porvavelmente não será o último a fazê-lo. Atualmente, o país vive a recuperação da memória coletiva e nacional através de livros, novelas, documentários da época, mostras de fotografia e pintura, exposições (uma delas tem como título Livros queimados, escondidos e recuperados a 40 anos do Golpe), seminários acadêmicos e colóquios internacionais que começam a acontecer em Santiago a partir de setembro.

"Vontade de futuro"

"Quando o futuro é opaco ou sem esperança - em que nada pode mudar - o passado reaparece em surdina. Foi o que ocorreu de maneira predominante nos anos da transição. Então quase se deixou de respirar para que nada se alterasse", escreveu sobre o tema Carlos Peña, reitor da Universidade Diego Portales e habitual polemista na imprensa nacional.

"Quando o futuro se agita - e as pessoas se dão conta de que as coisas podem ser diferentes, como está ocorrendo agora - o passado retorna com brios e tudo o que aconteceu e que parecia ter ficado para trás exige ser levado em conta, explicado ou justificado", sustentou o advogado, para quem a recuperação da memória se explica pela "vontade de futuro que surgiu no país".

Todos querem estar em sintonia com uma sociedade que disse não estar disposta a seguir por rotas que assegura não ter escolhido.

Porque é disso que trata a crise de maturidade, justamente, reivindicar ideais perdidos.

E não há momento melhor do que os 40 anos para se tomar um ar, outorgar-se licenças, olhar o passado, reconsiderar conquistas. A história recente do país é prova disso.

Foi no Chile que ocorreu a revolução do presidente Eduardo Frei Montalva, a via para o socialismo, que fez Allende passar à história como o primeiro líder marxista eleito por voto popular, e depois, já com os militares, onde se deu o primeiro plebiscito convocado por uma ditadura militar para derrubar o mesmíssimo Pinochet, questão que surpreendeu o mundo em outubro de 1988.

 

A raridade do presente

Uma raridade só comparável ao atual estado das coisas, onde os principais aspirantes à Presidência nas eleições do próximo 17 de novembro são duas mulheres de telenovela: a direitista Evelyn Matthei e a ex-presidente Michelle Bachelet.

A raridade não guarda relação com os dramalhões da TV. O lugar comum, por incrível que pareça é a família militar. Ambas são filhas de generais e ambos os generais pertenciam à Força Aérea em 1973.

A diferença é que então um deles servia como diretor da Academia de Guerra Aérea (Fernando Matthei) e o outro como prisioneiro, detido nos porões da mesma academia (Alberto Bachelet). Ou seja, um era o carcereiro apoiador do golpe de Pinochet e o outro, um alto oficial encarcerado por sua lealdade a Allende.

O primeiro chegou a ser comandante-em-chefe e membro da Junta Militar em 1976, enquanto Bachelet faleceu em consequência das torturas aplicadas por seus companheiros de armas durante os primeiros meses de terror do novo regime.

Inclusive há um processo aberto pelo advogado Eduardo Contreras contra o primeiro pela suposta responsabilidade na morte do segundo, algo sobre o qual, porém, nenhuma das filhas-herdeiras-candidatas quis explorar.

Certamente um roteirista seria demitido por criar semelhante enredo para uma novela de TV, mas o laboratório que sempre tem sido o Chile permite que a realidade supere não só a ficção como também a memória.

Esse é o novo experimento em vigor nessas eleições. Independentemente do programa de reforma profunda que oferece a candidatura de Bachelet ou de preservação do modelo que propõe Evelyn Matthei, o certo é que nessas eleições "o poder se move até seu último bastião", como disse Mayol em sua análise.

Seja quem for a futura presidente, o que o laboratório do Chile exporá ao mundo será o fim de um ciclo e uma época em que as defesas institucionais dominaram a reconstrução da cidadania em democracia.

Da mesma forma, este será o triunfo do mal-estar e da crise, não de um programa coerente ao qual já deram seu respaldo, por distintas conveniências, desde neoliberais até comunistas.

Sabe-se que as crises de maturidade têm desvios diferentes segundo as personalidades.

Uns se jogam embaixo de um trem porque consideram perdidos seus ideais, enquanto outros fecham os olhos para submergir por completo na corrupção desses mesmos ideais. Os mais serenos cuidam do que conquistaram e constroem bases para abrir caminho aos jovens, os menos endividados com todo esse passado de fumaça e fúria que hoje volta para cobrar o que, assegura, todos lhe devem.

(*) Roberto Brodsky é um jornalista e escritor chileno, professor visitante na Universidade de Georgetown, Washington DC.