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Privacidade, espionagem e neutralidade travam consenso em encontro da internet em SP

24/04/2014 23h33

Após dois dias de intensa discussão, ativistas, acadêmicos, representantes de governo e do setor privado puseram as mãos no documento que deve nortear, a partir de agora, o debate em torno da governança da internet - a Declaração Multissetorial de São Paulo.

Questões relativas à privacidade, vigilância e neutralidade da rede despertaram reações mais apaixonadas dos participantes e provocaram as principais divergências na revisão do documento. No final, representantes de Rússia, Índia e Cuba apresentaram reservas e não firmaram a declaração.

"O que sai daqui não é um fim, mas um início. Isso pode não ser um documento perfeito, mas tem a contribuição de múltiplos setores dos quatro cantos do mundo", disse o coordenador das discussões, Virgilio Almeida, secretário de Política de Informática do Ministério de Ciência e Tecnologia.

Apos inúmeras intervenções e pedidos de emenda no texto, um Comitê de Alto Nível se reuniu para revisar o documento. Em conversas reservadas, membros do comitê revelaram que um dos pontos de maior polêmica foi a questão da neutralidade da rede.

Segundo um dos membros, o Brasil tentou acrescentar no texto uma definição de neutralidade similar a do Marco Civil, mas representantes de outros países e, principalmente, do setor privado, preferiram recomendar que isso fosse discutido no futuro, o que acabou prevalecendo.

Segundo a organização, mais de 900 pessoas de 85 países contribuíram com as discussões.

Desacordo

Ao final do encontro de revisão do documento, um burburinho chamou atenção. Representantes de ONGs e outras organizações da sociedade civil se mostraram descontentes com pontos do documento e resolveram fazer uma declaração de repúdio. Nela, afirmaram que o documento fracassou em atingir preocupações chave, como uma menção maior à questão da neutralidade da rede, e que não abrange direitos fundamentais.

O texto inicial falava que deveria ser assegurado o direito à privacidade - "evitar a coleta ilegal ou arbitrária de dados pessoais e a vigilância". Em conversas reservadas, membros do comitê disseram que esse foi um dos pontos mais controversos.

A redação final teve um tom mais ameno e diplomático, dizendo que o direito à privacidade não deve "ser sujeito à vigilancia ilegal ou arbritária, à coleta, ao tratamento e ao uso de dados pessoais".

A questão da neutralidade da rede, que não constava no documento original e ganhou força após a aprovação do Marco Civil brasileiro, acabou entrando no documento final que recomendou, no entanto, que seja objeto de discussão futura.

Os representantes de Cuba e Índia manifestaram desacordo sobre alguns pontos. Cuba disse que apoia uma discussão no sistema ONU, o que se daria apenas no âmbito dos Estados, sem a sociedade civil e outros setores. A Índia disse que teria de fazer consultas antes de aceitar a declaração. Mas a reação mais forte veio da Rússia.

A delegação russa disse ter havido "falta de transparência" e que "todas as decisões foram feitas por um comitê e nós ficamos sem entender os princípios que levaram os comentários a serem incorporados". A comitiva disse discordar do documento e que o país não iria implementá-lo.

O coordenador do debate, Virgilio Almeida, disse que "os países precisam entender que essa é uma nova dinâmica de discussão", citando a reclamação russa de que queria ter mais espaço para se expressar.

Temas

Durante os dois dias de discussão, vários participantes - entre eles o representante da ONU, subsecretário-geral Wu Hongbo - pediram maior inclusão digital. Segundo cifras repetidas no evento, apenas um terço da população mundial tem acesso à internet.

A pluralidade da rede também foi lembrada em vários momentos, ao se defender o modelo multissetorial de governança da internet. O documento final defende que a governança se dê com participação do setor privado, da universidade e da sociedade civil, não apenas dos governos. Um diplomata presente no evento disse que esse modelo teve maior resistência de países como Rússia e China.

A decisão dos Estados Unidos em extinguir seu vínculo institucional com a Organização da Internet para Atribuição de Nomes e Números (Icann), órgão baseado em território americano que atribui e administra os nomes e domínios usados na internet, também repercutiu no evento.

A estratégia do governo brasileiro de chegar à NetMundial com o Marco Civil aprovado parece ter dado certo. O Brasil foi elogiado por muitos participantes, que viram na nova legislação uma grande referência, não apenas para as discussões sobre a governança internacional da rede, mas também para legislações locais em seus países de origem.

Em vários momentos, participantes protestaram contra a espionagem em massa, usando máscaras de Snowden.