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Agência de turismo emprega sem-teto como guias na Espanha

Liana Aguiar

De Barcelona para a BBC Brasil

23/09/2014 05h28

Inserida no competitivo mercado de turismo que, apesar da crise, continua em expansão na Espanha, uma agência faz um roteiro que difere do convencional e une a grande demanda do setor receptor a um grave problema social.

A Espanha registrou recorde de visitas de estrangeiros em agosto, tradicionalmente o mês de férias na Europa. Pela primeira vez, a cifra ultrapassou os 9,1 milhões de turistas internacionais, um aumento de 8,8% em relação a agosto de 2013, conforme o levantamento de movimentos turísticos em fronteiras (Frontur), divulgado nesta segunda-feira (22) pelo Ministério da Indústria, Energia e Turismo. Foram quase 45,4 milhões de janeiro a agosto.

A Catalunha é o principal destino de turistas estrangeiros que visitam a Espanha, 25,8% do total em agosto. Este ano, a região já recebeu 11,7 milhões de visitantes do exterior.

Para operar nesse mercado, surgiu a agência Barcelona Hidden City Tours, que tira pessoas sem-teto da rua para reinseri-las no mercado de trabalho. Em Barcelona, estima-se que mais de 3 mil pessoas dormem nas ruas.

Alguns pontos do roteiro estão fora do circuito turístico tradicional, mas o que mais marca o trabalho dos guias é a maneira como apresentam esses locais: uma mistura de história e cultura local com relatos de experiências pessoais.

Inspirado em um programa social inglês, o projeto de Barcelona começou há quase um ano e hoje tem sete guias que orientam turistas estrangeiros, nos idiomas inglês, alemão e francês.

A oferta nesses idiomas se deve ao fato de que a maioria dos estrangeiros que visita a Espanha vem do Reino Unido, França, Alemanha e países nórdicos, volume comprovado pelo levantamento do Frontur.

Lisa Grace, coordenadora do projeto, observa que esse é o público mais interessado em turismo alternativo, pois geralmente são turistas "mais conscientizados", define.

Ela se diz satisfeita com o retorno do público. "Queremos mudar o mundo, não para os guias, mas para as pessoas que os veem", declara Lisa.

Experiências

Nos bairros Gótico e Raval, na parte antiga da cidade, as histórias sobre os monumentos são contadas a partir da própria experiência dos guias.

"Quem nos procura não quer saber, por exemplo, a diferença entre o Gótico barcelonês e o Gótico francês, essa informação está na web e na biblioteca. Aqui a história é contada a partir do coração. Fazemos turismo responsável", explica um dos guias, Ramón Holgado, 64 anos.

Holgado foi chef de cozinha durante mais de 20 anos em Nova York. Voltou à Espanha por questões familiares e enfrentou dificuldades que o levaram à inimaginável situação de viver nas ruas de Barcelona.

Sobre essa experiência, ele resume que cair é fácil, difícil é se levantar. "Mas eu sou uma pessoa que está acostumada a levantar-se sempre", afirma.

Longe dos fogões, Holgado garante que está desfrutando da experiência como guia turístico. "Gosto do contato com as pessoas, sempre trabalhei com muita gente quando fui chef", lembra ele, que afirma que teve contato com muitos artistas e políticos em Nova York.

O trabalho como guia, para ele, é "um intercâmbio de pessoas e de emoções".

Durante o trajeto pela parte antiga de Barcelona, Holgado explica fatos históricos e a arte local e, por outro lado, reconhece que a região também "tem prostituição e drogas, como toda grande cidade do mundo". "Mostramos a realidade, sem decepcionar a ninguém", explica.

Também guia, Juan Conejero, 51 anos, admite que não pensava em trabalhar com turistas e, no início, tinha muita dificuldade em memorizar datas históricas. "Agora gosto muito de explicar aos estrangeiros assuntos que um guia oficial normalmente não explica", conta.

Ele também faz relatos de sua vivência nas ruas e mostra lugares onde dormia. "Ao relatar que dormi na Praça Felipe Neri, a experiência que tive, as vezes que me assaltaram, os turistas até esquecem a História" e se interessam pelo lado humano do roteiro.

Após se envolver em problemas por drogas, viveu nas ruas de Barcelona durante quatro anos. "Foi uma experiência de todo tipo, boa e má. Aprendi a ser eu mesmo", recorda.

Além de ser guia, hoje ele também trabalha como voluntário em um restaurante social, onde cozinha para pessoas sem-teto. "Percebi que se faço algo bom, tudo o que vem é bom", reflete.

Crise e vida nova

O tradutor José Martín, 41 anos, foi um dos milhares de espanhóis afetados pela crise econômica pela qual passa o país. Perdeu o emprego e o apartamento onde vivia e dormiu na rua por 22 dias.

"É muito duro porque, de um lado, você se torna invisível, mas, por outro lado, é uma experiência humana incrível, porque encontra em desconhecidos um apoio mútuo que não se vê fora desse mundo", relata.

"Nas ruas, tem muita gente que não vale a pena, mas tem muita gente maravilhosa, que compartilha o pouco que tem. Quando vejo essa generosidade, penso que ainda há esperança no mundo", diz Martín.