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Caso Loemy: Desdentados da Cracolândia também merecem atenção, diz assistente social

Eduardo Anizelli/Folhapress e Divulgação Skin Model
Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress e Divulgação Skin Model

Ricardo Senra

Da BBC Brasil, em São Paulo

26/11/2014 12h18

 

Com mais de quatro décadas de apoio à população de rua do centro de São Paulo e pelo menos duas circulando pela Cracolândia, a assistente social Tina Galvão, de 71 anos, está preocupada: "A exposição dessa modelo só traz mais revolta e frustração para os demais, que vão continuar invisíveis".

Para Tina, "a figura da Loemy não traz reflexão sobre o resto da Cracolândia. Lá circula gente feia, pobre, desdentada. A estes, que também precisam de ajuda, fica a sensação de que não merecem atenção".

Tina, que conhece boa parte dos usuários pelo nome e costuma ser recebida com abraços em visitas semanais ao local, se refere à ex-modelo viciada em crack que ganhou fama após ser capa da revista "Veja São Paulo" no último fim de semana.

Uma fotomontagem que espelha o rosto de Loemy Marques nos tempos de passarela com suas feições atuais, marcadas pelo uso da droga, foi reproduzida em sites, jornais e na televisão. Programas vespertinos dedicaram horas ao tema - um deles, no próximo domingo, promete custear sua internação em uma edição especial sobre a trajetória da moça.

A repercussão causou frisson nas redes sociais. De um lado, elogios e torcida pela "jovem-símbolo" da degradação causada pela droga, "que também pode vitimizar a classe média". Alguns apontam que o destaque conseguido na mídia pela história da ex-modelo tem o aspecto positivo de aumentar a conscientização da população para as condições enfrentadas pelos dependentes de crack em São Paulo.

Por outro lado, circulam críticas à escolha da "loira magra, de 1,79 metro de altura e olhos verdes", nas palavras da revista, em detrimento da maioria - que em geral não atende aos padrões tradicionais de beleza.

A assistente social concorda com a última opção. 

BBC - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A assistente social Tina Galvão
Imagem: Arquivo pessoal


"Acho tudo isso cruel. Com ela (Loemy) e com os outros", diz. "Você passa anos invisível e, de um dia para o outro, é disputada por camarins e holofotes. Programas de televisão trazem deslumbramento, mas não oferecem estrutura para quem está doente."

Holofotes

Tina ficou conhecida pela população de rua nos anos 1970, quando se mudou de Jaú, interior de São Paulo, para a capital. Desde então, trabalhou com diferentes grupos que vivem em situação de vulnerabilidade na região central.

Primeiro, se aproximou de pessoas que dormiam em praças e sob viadutos. Depois, na antiga Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor), ofereceu apoio a menores acusados de delitos e suas famílias. Mais tarde, dedicou-se às travestis e prostitutas expostas à violência e aos riscos do recém-chegado HIV. Nos anos 1990, conheceu o cotidiano dos usuários de crack da alameda Cleveland - onde até hoje eles se reúnem.

A assistente social ganhou fama no ano passado graças à "terapia do abraço" que implantou na região frequentada pelos craqueiros.

Em passeios noturnos, sozinha, ela passa horas conversando com os usuários e agindo como ponte entre suas demandas e o poder público. Tudo sempre depois de um longo abraço - ela considera o gesto importante para mostrar que "a conversa é de igual para igual".

Tina, que diz conhecer a ex-modelo "de vista", afirma temer pelo dia em que "os holofotes se apagarem".

"Já vi casos parecidos: a família descobre o parente, leva o cara para uma clínica particular com tudo do bom e do melhor, mas não quer saber que tipo de terapia o usuário prefere encarar. Em todos, a pessoa voltou para a rua depois. Quando não parte do usuário, a droga costuma vencer. Por isso o meu lema: quem pita é quem apita."

Uma pesquisa feita pela fundação Oswaldo Cruz com usuários de crack de todos os estados do país e no Distrito Federal endossa a opinião de Tina. O estudo, divulgado neste ano, indica que menos de 5% dos entrevistados completam seus tratamentos contra a dependência.

Mulheres

A assistente social lamenta que a discussão não se estenda aos demais frequentadores na Cracolândia - especialmente as mulheres.

"Elas são sempre as mais vulneráveis. Para algumas, vai surgir a esperança de ser a próxima Loemy. Mas a maioria vai sofrer e continuar se prostituindo e se sujeitando a violências. Vão se perguntar: 'Por que não estão preocupados comigo? Porque eu sou feia, porque tenho o rosto machucado, porque tenho varizes'."

O estudo da Fiocruz mostra que 20% dos frequentadores de cracolândias são mulheres. Depois de entrevistar e realizar testes com 32.359 usuários, a pesquisa indicou que, entre as mulheres, 8,17% eram portadoras de HIV e 2,23% tinham hepatite C. Entre os homens, respectivamente, os índices foram 4,01% e 2,75%.

A assistente diz concordar "em parte" com o projeto Braços Abertos da Prefeitura de São Paulo, que oferece trabalho e hospedagem em hotéis da região para usuários dispostos a abandonar a droga.

"Para as pessoas mais estáveis, com mais autocontrole, vale algo como o Braços Abertos, que retoma a dignidade e traz oportunidades de trabalho e moradia que são raros para quem está na rua. Mas tem uma grande parcela que não tem a menor estrutura psicológica e uma dependência muito grande da droga", afirma.

Para estes, segundo Tina, é preciso "um trabalho intenso de saúde mental".

"Mas sempre respeitando as vontades e limites do usuário, do contrário não dá certo", diz. "É um processo lento, cuidadoso, mas que traz resultado."