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No Rio, ex-sede do Dops tem passado sombrio e futuro duvidoso

09/12/2014 16h20

É a quarta vez que Jane Alencar entra nestas celas, onde funcionava o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no centro do Rio. Nas três primeiras vezes, tinha entre 17 e 21 anos. Mais de 40 anos depois, pisar ali novamente lhe traz uma "tristeza profunda."

"Isso marcou muito a minha vida. Eu era muito jovem. E as pessoas ainda não foram punidas pelas coisas erradas e violentas que fizeram naquela época", diz, emocionada.

É a primeira vez que Jane, Maria Helena Guimarães Pereira, Ana Miranda e Fátima Setúbal, todas ex-militantes de grupos diversos - ligados a Igreja ou a organizações clandestinas de esquerda -, voltam às celas femininas do antigo Dops, conhecidas como Depósito de Presas São Judas Tadeu, onde ficaram presas durante a ditadura.

Foram levadas pela Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, que organizou a diligência para buscar entender o espaço, suas funções e a extensão das modificações feitas no prédio desde que ele deixou de ser a sede do Dops.

O endereço, ainda conhecido como "prédio do Dops", foi um centro de detenção política e tortura durante a ditadura militar.

Hoje, diversas entidades de direitos humanos e ex-detentos fazem campanha para que seja transformado em um centro de memória.

No ano passado, o ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, chegou a anunciar que o cederia o prédio para a instalação de um museu em memória das vítimas da ditadura militar.
 

Mas a promessa não foi adiante. O destino do prédio é disputado com a Polícia Civil, que administra o prédio. O novo governador, Luiz Fernando Pezão, ainda não se posicionou sobre o assunto e não respondeu à consulta da BBC Brasil.

Documentos sumidos

Enquanto isso, a impressão é de abandono total.

Para entrar, as ex-detentas precisam driblar caixas, armários, cadeiras e toda sorte de entulho.

A primeira vez que entrou no Dops, um ano atrás, a Comissão Estadual da Verdade se surpreendeu ao encontrar pilhas e pilhas de documentos de valor histórico abandonados, cobertos por poeira e fezes de pombos e morcegos. Desta vez, uma surpresa ainda maior: os documentos foram retirados, e seu paradeiro é incerto.

O edifício é tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) por seu valor histórico, mas foi fechado em 2008 por risco de desabamento. Até então, parte do prédio funcionava como sede da 1ª DP e a polícia mantinha um pequeno museu sobre a instituição.

A estrutura foi abalada pelas obras de construção de duas torres da Petrobras atrás do prédio, e agora passa por obras para recuperar sua fachada e estrutura. O interior, no entanto, está em estado avançado de degradação.

A equipe da BBC Brasil teve que usar capacetes para se resguardar de quedas de reboco, enquanto o grupo era orientado a não pisar em determinados lugares onde o piso corre risco de desabar.

Moção de apoio internacional

As décadas passaram, mas as paredes descascadas vão puxando as memórias. As lembranças mais sombrias não são ditas; as que elas compartilham entre si são as do dia a dia na prisão.

As ex-detentas apontam, gesticulam, de repente reconhecem uma sala e põem-se a debater sobre se ali ficava a cozinha onde preparavam as refeições com as presas comuns, e lembram dos dias catando arroz e feijão.

À direita do portão de entrada, identificam algumas celas mantidas como eram, com as mesmas camas de concreto pendendo de uma das paredes como prateleiras. Ratos subiam sem dificuldades.

A promessa de Cabral foi feita no discurso de posse dos membro da Comissão Estadual da Verdade, em maio de 2013, e seus membros agora lutam para vê-la cumprida.

A pressão foi reforçada pelo Ocupa Dops, um movimento social que desde dezembro do ano passado vem realizando uma série de ocupações culturais em frente ao prédio.

Nesta semana, o movimento vai enviar uma carta ao governador Luiz Fernando Pezão cobrando que assuma o compromisso feito por Cabral. O grupo enviou carta semelhante durante a campanha eleitoral, mas não obteve retorno.

A esperança é que a semana de divulgação do relatório da Comissão Nacional da Verdade e do Dia dos Direitos Humanos seja uma boa ocasião para que manifeste seu apoio.

E a reivindicação agora conta com apoio internacional.

A Coalizão Internacional de Sítios de Consciência e a Rede Latino-Americana de Espaços da Memória – que abarcam instituições de vários países voltadas para sítios de memória – elaboraram uma moção apelando a Pezão para permitir a transformação do Dops.

A Polícia Civil defende que o prédio abrigue um novo museu histórico da instituição, e argumenta que este também contemplaria o período em que o mesmo funcionou como sede do Dops.

Símbolo de outros períodos de repressão

Segundo o assessor de relações institucionais da Polícia Civil, o delegado Gilbert Stivanello, a Polícia Civil não abrirá mão do prédio, que é "muito importante" para a instituição e representa muitos outros períodos da história da instituição.

Para aqueles que defendem a transformação do prédio, no entanto, essa história mais ampla também é um argumento.

O prédio teve relação com outros períodos de repressão ao longo do século 20.

Foi inaugurado em 1910 em imponente estilo eclético europeu para dar ares modernos à repartição central de polícia.

Nas primeiras décadas do século, foi um dos principais centros de perseguição à capoeira, a religiões afro-brasileiras e à "vadiagem", criminalizada pelo Código Penal de 1890.

Depois veio o Estado Novo e o endereço passou a abrigar a Delegacia Especial de Segurança Política e Social e o aparato de repressão do governo Getúlio Vargas.

País de 'apagamento de rastros'

Lá estiveram presos Luis Carlos Prestes e Olga Benario – antes de ser deportada e entregue à Alemanha nazista de Hitler, onde morreria em um campo de concentração.

"Há outros prédios que simbolizam a repressão, mas o Dops foi escolhido pelo movimento porque representa a história da repressão de diversos períodos da República brasileira", diz a pesquisadora em direitos humanos Fernanda Pradal, integrante do movimento Ocupa Dops.

A proposta não é que o espaço se torne um museu, e sim um centro com espaço para debates e reflexão crítica. O plano de uso foi elaborado em sessões participativas com a sociedade civil e apresentado em audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio em agosto – mas em vez de um representante da Casa Civil, o governo do Estado enviou um porta-voz da Polícia, diz Pradal.

Wadih Damous, presidente da Comissão da Verdade do Rio, diz que manter um museu da polícia no antigo Dops é um "desrespeito" à memória de ex-presos e seu familiares. Ele afirma que o Rio está atrasado.

"Em centenas de lugares que passaram por ditaduras, espaços usados para tortura e repressão são transformados em centros de memória", diz.

"Aqui, é essa vergonha. A memória não se cultiva, pelo contrário. O Brasil é um país de apagamento de rastros. Esconde a história da escravidão, da Guerra do Paraguai, do Estado Novo, da ditadura militar. É um país que procura não ter memória."