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As 'estações numéricas' de rádio que sobreviveram à Guerra Fria

Apesar de sobreviverem em menor número do que na Guerra Fria, rádios numéricas ainda intrigam ouvintes  - Thinkstock
Apesar de sobreviverem em menor número do que na Guerra Fria, rádios numéricas ainda intrigam ouvintes Imagem: Thinkstock

Olivia Sorrel-Dejerin

21/12/2014 07h07

Vivemos na era da espionagem ultratecnológica e dos e-mails criptografados. No entanto, nas rádios de ondas curtas, ainda é possível escutar uma forma de espionagem muito antiquada...

São as 13h03 de uma terça-feira em um quarto cheio de equipamentos de rádio relativamente avançados. De repente, se houve uma mensagem de 10 minutos em código Morse.

Há uma pequena comunidade de fãs que acreditam que este tipo de mensagens são vestígios da Guerra Fria. São as misteriosas "estações numéricas".

'Ein... zwei... drei...'

No clímax da Guerra Fria, os amantes da rádio em todo o mundo começaram a perceber a transmissões surpreendentes.

Elas começam com uma música estranha ou o som de diversos apitos, que podem se seguir do som inquietante de uma voz de mulher contando em alemão ou da voz de uma criança recitando letras em inglês.

Ao encontrar essas mensagens em ondas curtas, muitos entusiastas do rádio concluíram que elas estavam sendo usadas para enviar informação codificada através de distâncias muito longas.

Escutar esse tipo de mensagem era uma experiência curiosa. Os ouvintes logo começaram a chamá-las com nomes pitorescos como "A rapsódia sueca", "A estação gong" e "Nancy Adam Susan".

Os tempos mudaram e a tecnologia se desenvolveu, mas há indicações de que este método de comunicação aparentemente antiquado ainda pode estar sendo utilizado.

De acordo com alguns especialistas em espionagem, estações numéricas em ondas curtas podem parecer de baixa tecnologia, mas elas provavelmente continuam sendo a melhor opção para transmitir informação a agentes secretos.

"Ninguém encontrou até hoje uma maneira mais conveniente de se comunicar com um agente", diz Rupert Allason, um autor especializado em espionagem, que escreveu sob o pseudônimo Nigel West.

"Para agências de inteligência, o único propósito é comunicar-se com seus agentes em áreas proibidas – territórios onde é difícil usar uma forma de comunicação normal", diz Allason.

Um ex-oficial do Quartel-general de Comunicações do governo britânico (GCHQ, na sigla em inglês) – que pediu para não ser nomeado e cuja tarefa era interceptar sinais enviados ao Reino Unido e procurar por essas estações numéricas nos anos 1980 –, acredita que as transmissões eram destinadas a agentes em campo ou a embaixadas.

Era uma "via de mão única": as emissoras transmitiam números para os destinarários. Eles não respondiam.

Um espião e um rádio

Para que as estações numéricas seriam usadas?

"O sistema é completamente seguro porque as mensagens não podem ser rastreadas. O destinatário poderia estar em qualquer lugar", diz à BBC Akin Fernandez, criador do Projeto Conet – um arquivo abrangente do fenômeno das estações numéricas.

"É fácil. Você manda os espiões para um país e pede que eles comprem um rádio. Eles saberão em que estação sintonizar e quando."

Fernandez ficou fascinado pelo mistério das estações. Dedicou três anos de sua vida a compilar um arquivo coerente sobre elas.

"Era tão estranho que eu quis saber mais sobre elas. Uma vez que você as escuta, elas te afetam", afirma.

"Nunca imaginei que estaria falando sobre isso 17 anos depois de ouvir (uma estação numérica) pela primeira vez – quando o Projeto Conet começou."

Ao contrário de outros aspectos da Guerra Fria, as estações numéricas não deixaram uma impressão forte na cultura popular. "É um assunto sem graça... até você escutá-las", diz Fernandez.

Para Philip Davies, professor de política e história na Universidade Brunel, em Londres, o método é "uma forma de comunicação segura entre o serviço secreto de inteligência e seus agentes e é incompreensível".

Mas a espionagem não foi a única explicação que se considerou para as estações. Algumas pessoas chegaram a argumentar que o fenômeno não passava de uma brincadeira bem elaborada.

No entanto, a escala das emissoras – são diversas frequências em idiomas diferentes – faz com que a explicação pareça improvável. Segundo Fernandez, a pessoa que elaborou tal brincadeira teria gasto milhões em equipamentos de transmissão.

Rastros

Apesar da aura de mistério que rodeia a espionagem, algumas indicações do propósito das estações numéricas já foram descobertas.

"Houve vazamentos anônimos, histórias de pessoas sendo presas com rádios, 'chaves de uso único' e outras pequenas provas, além de livros e revistas secretos", diz Fernandes.

A chave de uso único é uma técnica de criptografia na qual um algoritmo ajuda a criar um código que só pode ser usado uma vez, impedindo que outras pessoas pudessem decifrar a mensagem.

Uma das histórias que confirmou o objetivo das estações aconteceu em 1989, quando um espião tcheco foi preso no Reino Unido porque seu equipamento estava com defeito e era possível escutar as mensagens de rádio em outros apartamentos no edifício em que ele morava.

"E também em 1989, quando o regime (comunista) de Ceaucescu caiu na Romênia, as transmissões que vinham de lá pararam", diz o ex-funcionário do GCHQ.

Especialistas têm certeza que as estações de rádio numéricas ainda existem, mesmo que sejam poucas.

"É um método antiquado, mas é seguro. O perigo de um computador é que, se o capturam, é possível encontrar os dados. Mas um papel com uma chave de uso único a pessoa pode jogar na privada ou até comer", diz o radioamador Al Bolton.

Nas operações que descobriram uma rede de espiões russos no Estados Unidos em 2010, os documentos apresentados no tribunal afirmavam que eles usavam "transmissões de rádio codificadas e informações criptografadas", uma indicação de que eles podem ter recebido ordens por estações numéricas de ondas curtas.

Apesar de todas as pistas, nenhum governo ou serviço de inteligência admitiu ou negou oficialmente o uso dessas estações.

"Quando lançamos o Projeto Conet, algumas agências de espionagem admitiram que as estações 'não eram para o consumo do público'. Isso é o mais perto que chegamos de uma confirmação", diz Fernandez

Entusiastas e céticos continuam debatendo o verdadeiro propósito das estações misteriosas. Mas já se sabe que elas não são apenas fruto da imaginação.