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Amigo de cartunistas mortos lembra dia de trabalho na revista 'Charlie Hebdo'

Mulher olha para as flores e outros objetos depositados na frente do prédio onde fica a redação da revista "Charlie Hebdo", em Paris - Jacques Demarthon/AFP
Mulher olha para as flores e outros objetos depositados na frente do prédio onde fica a redação da revista 'Charlie Hebdo', em Paris Imagem: Jacques Demarthon/AFP

Vishwajyoti Ghosh

09/01/2015 09h27

O cartunista indiano Vishwajyoti Ghosh contou como foi passar um dia "memorável" na redação da "Charlie Hebdo". Ele era amigo de muitos dos chargistas mortos no ataque desta quarta-feira (7).

"Uma grande mesa-redonda, com muitos papéis em branco e algumas canetinhas pretas. Essa é a primeira cena que me vem à mente ao lembrar da redação da 'Charlie Hebdo' em Paris.

A reunião editorial havia começado cedo. Alguns dos artistas já estavam na sala, outros estavam chegando. E então começou a discussão de ideias.

À medida em que os cartunistas começavam a pensar alto, o editor ia anotando em um quadro branco as ideias e temas para a próxima edição.

Então é assim que funciona, eu disse a mim mesmo. Uma publicação de 12 páginas com apenas charges, tirinhas e editoriais curtos.

Conforme a reunião prosseguia, mais ideias e piadas iam de um lado para o outro da mesa. Alguns dos cartunistas já começavam a trabalhar, rabiscando loucamente em seus papéis.

Meu amigo Tignous (pseudônimo de Bernard Verlhac, um dos mortos no atentado) entrou correndo, meio como um garoto que mora perto da escola e, por vezes, chega por último.

Uma olhada rápida na lousa, e os temas estavam lá, indicando como seria a edição.

Eu estava na França para uma residência artística (período de estudo) e conheci Tignous por meio de um amigo.

Isso foi em 2004, e como o Fórum Social Mundial aconteceria em Mumbai, alguns dos cartunistas da Charlie Hebdo estavam indo para lá cobrir o evento.

O Tignous me apresentou - como “o cartunista da Índia” - e todo mundo olhou para mim, na esperança de que eu tivesse algo a dizer sobre o Fórum ou sobre Arundhati Roy, uma premiada autora indiana que havia dado uma palestra na Sorbonne sobre o Iraque pouco tempo antes.

Eu apenas sorri.

Em seguida fui apresentado ao homem ao meu lado, Cabu (também assassinado durante o ataque). Ele já tinha viajado para a Índia e ia publicar seu livro por aí.

Conversamos por um tempo, falamos sobre as cidades no mundo que conhecíamos e das coisas absurdas que cartunistas muitas vezes descobrem.

A essa altura, a missão da revista estava clara. Irreverência, não se importar com nada e, mais importante, “ridicularizar o ridículo”. Não poupar ninguém.

Naquela época, uma garota havia sido proibida de usar um hijab (véu islâmico) em uma escolar francesa, e a polêmica estava em todas as manchetes.

Toda a França estava debatendo o caso – e os cartunistas estavam desenhando e fazendo provocações aos dois lados da história.

Ficou claro que ninguém seria poupado – deuses, instituições, religiões e, claro, Nicholas Sarkozy, que era ministro do Interior da França no momento.

E então eles estavam lá, os principais cartunistas franceses se expressando sem meias palavras, esbravejando e rindo com suas canetas nas mãos.

O editor-chefe então conversava com os outros editores e o que se seguiu foi um longo debate. Muito democrático. Muito francês.

Depois de um tempo, Cabu virou para mim e disse: “Por que você não desenha algo e mostra pra eles? Vamos ver se o seu humor é francês o suficiente.”

Eu ri e desenhei algumas coisas – se elas eram francesas o suficiente eu nunca descobri, apesar de todos terem sido muito receptivos.

Tignou e eu nos tornamos bons amigos, mesmo sem falar o idioma do outro.

A mulher dele, uma tradutora, ficou muitas vezes no meio de um fogo cruzado ao traduzir nossas piadas ridículas.

Alguns anos depois eu me reencontrei com eles na Feira do Livro de Calcutá, em que a França era o país convidado.

Cabu estava fascinado com a cidade – o trânsito, os táxis buzinando, os cafés… Tudo isso virou material para suas linhas espontâneas e seu humor errático.

Aqueles homens que ridicularizavam tudo agora ridicularizaram a morte também. Fizeram isso ao manterem suas canetas pretas para sempre comprometidas com suas ideias em um papel em branco.

Em épocas em que charges políticas se tornam uma ameça para os intolerantes, as canetas carregam o poder de desenhar, criticar e ridicularizar.

Podemos concordar ou não com suas políticas, mas acredito que milhares de Charlie Hebdo estão aqui para ficar – e para nos fazer rir, pensar, para nos ofender, debater e depois rir novamente.


* Vishwajyoti Ghosh é cartunista e vive em Delhi