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Dois anos depois, incêndio da Kiss ainda 'parece ontem'

Pais e amigos se reúnem em frente à boate Kiss para homenagear as 242 pessoas mortas no incêndio - Jean Pimentel/Agência RBS/Estadão Conteúdo
Pais e amigos se reúnem em frente à boate Kiss para homenagear as 242 pessoas mortas no incêndio Imagem: Jean Pimentel/Agência RBS/Estadão Conteúdo

Júlia Dias Carneiro e Luciani Gomes

No Rio

27/01/2015 10h21

O luto tem muitos tons em Santa Maria. A perda de Rafaela Schmitt Nunes mergulhou a família numa obscura depressão. A morte de Rafael Carvalho colocou o pai numa busca incansável pela justiça. Os gêmeos Guilherme e Emanuel Pastl buscam seguir em frente sem traumas, mas sem esquecer a terrível noite à qual tiveram a sorte de sobreviver.

"A cidade meio que engrenou na rotina, mas ninguém jamais vai esquecer o que aconteceu. É muito difícil", diz Guilherme, que comemorava com o irmão o aniversário de 19 anos e só acordou de um coma induzido seis dias depois, retirado da casa noturna desmaiado, até hoje sem saber por quem.

Marcada para sempre pelo incêndio que matou 242 pessoas na boate Kiss na madrugada de 27 de janeiro de 2013, a cidade gaúcha de Santa Maria lembra o segundo aniversário da tragédia com missas, vigílias e homenagens – e uma dor que persiste mais forte quanto maior a proximidade do evento e de suas vítimas.

A lembrança está estampada na fachada da Kiss. Debaixo do painel rosa e vermelho com o letreiro da boate, "242 ASSASSINADOS" foi pintado em letras garrafais. Logo ao lado, um painel do movimento Do Luto à Luta pergunta: "Até quando a indiferença vai servir à injustiça?"

Os buracos abertos a marretadas dois anos atrás, no desespero de salvar centenas de jovens da fumaça tóxica do incêndio, foram fechados. Mas o clamor incansável por justiça continua sem resposta, com os processos que avaliam a responsabilidade dos dois sócios da boate e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira ainda longe de uma conclusão.

'Parece ontem'

O tempo do luto não é o mesmo da Justiça. Nem é o mesmo para a população e para aqueles diretamente afetados. Santa Maria vem retomando sua rotina, mas em ritmos diferentes, diz o psicanalista Volnei Antonio Dassoler.

"Não se pode medir os efeitos de uma catástrofe cronologicamente. Pode parecer muito, mas da perspectiva daqueles que foram expostos, dois anos ainda parecem ontem. O episódio ainda está muito forte, muito presente", diz.

Dassoler coordena o Acolhe Saúde, serviço público que começou o atendimento psicossocial aos afetados no dia após o incêndio. De lá para cá, pelo menos 970 pessoas já foram atendidas, entre sobreviventes, familiares e amigos de vítimas.

Dois anos depois, ele diz que ainda é preciso alcançar mais pessoas. "No primeiro momento, a prioridade foi atender aos familiares e feridos mais graves, com sofrimento mais agudo", explica.

"A maioria dos sobreviventes seguiu em frente sozinha, com suporte de amigos e familiares. Mas muitas pessoas que tentaram por conta própria chegaram a um limite e ainda estão em sofrimento. Nosso desafio é encontrá-las", diz.

Jorge Alberto dos Santos Nunes não procurou ajuda de imediato e viu sua vida "se desestabilizar completamente". O incêndio matou sua filha Rafaela, de 18 anos.

Ele tinha acabado de fazer aniversário – no dia 25 – e, na noite de sábado, a família tinha jantado junto para comemorar. Rafaela depois foi à Kiss celebrar o aniversário de dois amigos. Era sua segunda vez na discoteca.

Ela ia começar o primeiro emprego na segunda-feira, em um restaurante, e tinha acabado de estrear o colchão novo que o pai comprara.

"Ela vinha se queixando de dor nas costas por causa do antigo, que já estava vencido. Com nosso esforço compramos um novo, mas ela só dormiu nele uma noite", lamenta.

Depois da tragédia, Nunes caiu em depressão e não conseguiu voltar para o emprego, de técnico de telefonia. Meses depois, procurou ajuda no Acolhe Saúde.

Aos poucos está se reerguendo. Acaba de voltar para o trabalho e agora se preocupa com a esposa, que era "apegada demais" à filha e está "pior que todos", mas recusa tratamento.

"Como chefe de família, me sinto na obrigação de não cair mais. Tenho que me esforçar e ajudá-la."

Cicatrizes abertas

Os pais costumam expor suas cicatrizes de maneira mais aberta que os jovens que conseguiram escapar da boate naquela noite.

A psicóloga Maria Luiza Pacheco diz que muitos sobreviventes preferem não se expor para evitar o rótulo.

"Eles não querem ser reconhecidos como sobreviventes da Kiss. Isso gera perguntas muito invasivas. As pessoas acabam colocando-os numa posição de vítima – como se eles também tivessem morrido um pouco. Mas eles estão vivos, estão buscando outras coisas na vida, e não querem esse rótulo."

Os gêmeos Guilherme e Emanuel Pastl, agora com 21 anos, se mantêm distantes de associações de sobreviventes ou familiares. Ao contrário de muitos sobreviventes, dizem levar uma vida sem traumas.

"Procurei encarar de uma forma mais positiva, no sentido de aproveitar a vida e perceber que existe bondade. Em uma situação dessas, as pessoas se envolvem e tentam ajudar", diz Emanuel, estudante de engenharia em Porto Alegre.

Ele estava em Santa Maria para passar o aniversário com o gêmeo Guilherme, estudante de Relações Internacionais na Universidade Federal da cidade.

Quando o fogo começou, Emanuel e os amigos da dupla conseguiram sair logo, mas Guilherme desmaiou antes de chegar à saída. Só saiu do coma seis dias depois, e aos poucos começou a entender o que tinha acontecido.

"Eu me lembrava do incêndio, mas não tinha noção do quão grave tinha sido. Só quando eu vim para casa tive a real dimensão da tragédia, vendo reportagens e lendo na internet", conta Guilherme.

Ainda assim, os dois não sentiram necessidade de procurar tratamento psicológico ou psiquiátrico. Sequelas, somente as físicas: ambos desenvolveram bronquiolite e Emanuel ficou com algumas cicatrizes.

Nas primeiras vezes em que foram a boates após a tragédia da Kiss, a busca pela saída de emergência com os olhos foi automática. Hoje em dia, dizem estar mais tranquilos mas se preocupam com a infraestrutura dos locais que frequentam – e querem que os responsáveis pela tragédia sejam punidos.

Dor e paz

Para muitos familiares de vítimas, a morosidade da Justiça e o temor de que os responsáveis pelo incêndio não sejam punidos se soma à dor da perda.

O consultor de informática Paulo Carvalho dedica, hoje, metade do seu tempo à luta por justiça e à criação de regras de segurança mais rigorosas que ajudem a prevenir outras tragédias no Brasil. Ele perdeu o filho Rafael.

Carvalho já fez diversas viagens para congressos e simpósios sobre as chamadas "tragédias evitáveis", passando a fazer parte de uma rede internacional de informação e solidariedade composta por familiares de vítimas de outros incêndios trágicos – como o que matou 194 pessoas na discoteca República Cromañón, na Argentina, em 2004, e o que fez cem vítimas na boate The Station, nos Estados Unidos, em 2003.

A diferença entre Santa Maria e o caso americano, diz, é que lá o episódio levou a uma mudança na legislação e à exigência da adoção de sistemas de prevenção mais eficazes por casas de entretenimento no país todo.

"Eles têm a dor, mas têm a paz, porque a justiça foi feita. As punições fizeram com que proprietários de casas noturnas avançassem bem mais na prevenção", diz Carvalho.

"Já nós não temos paz. Onde não há punição, as tragédias voltam a acontecer. Mas não vamos deixar isso acontecer."