Topo

Venezuela: Contrabando de gasolina já rende tanto quanto narcotráfico

Claudia Jardim

De Caracas para a BBC Brasil

27/01/2015 07h35Atualizada em 27/01/2015 16h55

Há seis meses, Pedro (nome fictício) decidiu trancar a matrícula no curso de Comunicação Social em Caracas e voltou à casa da mãe, no Estado de Táchira, fronteira com a Colômbia. Lá, optou por uma ocupação mais rentável, que exige pouco esforço. Comprou uma moto similar à que usava em Caracas para trabalhar como mensageiro e engrossou a atividade econômica de boa parte da população fronteiriça: o contrabando de gasolina.

Pedro faz parte da engrenagem que escoa diariamente 100 mil barris de gasolina pela fronteira venezuelana. O contrabando de combustível representa um rombo de US$ 2,2 bilhões anuais (R$ 5,7 bilhões) aos cofres da estatal petroleira PDVSA, motor da economia do país.

O motoqueiro levanta cedo. Coloca uma jaqueta e um colete verde com a placa da moto impressa na parte de trás e conduz a moto quase sem combustível até o posto de gasolina mais próximo a fronteira com a Colômbia. Ali enche o tanque de 20 litros, pelo qual paga 1,90 bolívar (US$ 30 na cotação oficial de 6,30 bolívares por dólar, ou US$ 0,01 no câmbio paralelo).

O posto é também o ponto de encontro entre Luís e outros motoqueiros, uma média de quinze. Juntos, eles gastam entre 15 a 20 minutos para cruzar a cidade colonial de San Pedro del Río até Cúcuta, na Colômbia. Antes de passar para o lado colombiano, Luís e seus amigos pagam um "pedágio" ao Guarda Nacional de turno para não ter problemas com a operação anticontrabando.

"O guarda que está ali já sabe como é o esquema, um desce, dá o dinheiro de todos e continuamos a viagem", relata Pedro à BBC Brasil.

Em Cúcuta sobram compradores, dispostos com galão e mangueira a mão. "É rápido. Eles esvaziam o tanque, enchem o galão deles, nos pagam e pronto", conta Pedro.

O venezuelano diz não saber com quem faz o negócio e se pertencem ou não a alguma organização armada, denominador comum no controle fronteiriço. "Não sei se são paramilitares, guerrilheiros ou gente comum ali da cidade mesmo. Isso (perguntar) não faz parte do negócio."

Lucros

Especialistas consideram que o contrabando de gasolina na fronteira se tornou quase tão rentável como o narcotráfico.

"O rendimento do contrabando de gasolina pode ser até maior porque não implica gastos, com exceção do transporte ilegal", afirmou à BBC Brasil o economista Luis Vicente León.

Até mesmo o presidente venezuelano Nicolás Maduro admitiu que o contrabando de alimentos e de gasolina é mais lucrativo "que vender cocaína".

Autoridades colombianas afirmam que paramilitares e guerrilheiros passaram a se beneficiar das rotas de contrabando de combustível. O esquema se reproduz na fronteira com o Brasil, com a Guiana e na rota para as ilhas do Caribe.

O tanque com 20 litros de gasolina que custou 1,90 bolívar a Pedro é vendido aos colombianos por 1,4 mil. Na Colômbia, os mesmos 20 litros serão revendidos por quase cem vezes mais que o valor inicial de compra.

"É fácil passar a gasolina e não estou prejudicando ninguém. A moto é minha, eu compro a gasolina, não é um delito, é só uma maneira de ganhar dinheiro", afirma Pedro.

O motoqueiro venezuelano faz três viagens diariamente. Descontando as propinas que ele deixa no caminho, em apenas dois dias é possível faturar 7,2 mil bolívares (US$ 1.142 segundo a taxa oficial, mas apenas US$ 39 no câmbio paralelo), 35% a mais que o salário mínimo mensal fixado em 4,8 mil bolívares.

Há alguns anos, o governo local obrigou todos os proprietários de veículos a se cadastrarem em um sistema automatizado para a venda de combustível controlado por um chip. Com ele, cada motorista só pode abastecer o tanque uma vez ao dia.

A restrição, no entanto, não inibiu o contrabando e abriu uma nova fonte de corrupção. "Damos uma propina ao frentista cada vez que temos que encher o tanque e pronto", conta Pedro.

No ano passado, foi acordado entre os governos de Nicolás Maduro e do colombiano Juan Manuel Santos o fechamento noturno das fronteiras a partir das 18h para evitar o contrabando.

As medidas, no entanto, parecem insuficientes para conter uma atividade rentável praticada há décadas e intensificada nos últimos meses em consequência da crise.

"A situação piorou no ano passado depois das guarimbas (protestos contra o governo Maduro). Muita gente perdeu o emprego e com a indenização, não pensou duas vezes, comprou uma moto para vender gasolina", diz o motoqueiro.

'Segurança nacional'

O impacto do esquema dos motociclistas, chamados de bachaqueros (em português, formigas tanajuras), é muito pequeno se comparado com o contrabando feito com caminhões-pipa que podem transportar até 40 mil litros por viagem.

Para o economista Mazhar Al Shereidah, professor da pós-gradução de economia petroleira da Universidade Central da Venezuela, o contrabando deve ser encarado pelo governo como um problema de "segurança nacional".

"É trabalho do Exército e da Guarda Nacional manter permanentemente uma vigilância", disse ele à BBC Brasil.

Em sua opinião, a única maneira de coibir o delito praticado há décadas é a aplicação de punições severas a militares que fazem parte do esquema de contrabando.

"(Deve haver um sistema) onde não haja espaço para a corrupção e onde o responsável, uma vez descoberto, seja castigado com degradação (na carreira militar), preso ou expulso da instituição", afirma. "(Do contrário) isso vai continuar".

O economista Víctor Álvarez, ex-ministro chavista de Indústrias, por sua vez, defende igualar o preço da gasolina venezuelana à colombiana nos estados fronteiriços para eliminar a margem de lucro que torna tão atrativo o contrabando. Do contrário, a seu ver, o contrabando de combustível continuará sendo um negócio rentável.

"Qualquer controle ou medida repressiva tomada com a intenção de erradicar contrabando de extração sempre será insuficiente", disse Álvarez em um artigo sobre o impacto do aumento dos preços do combustível.

Aumento da gasolina

Anualmente, os gastos com a produção e com o subsídio ao consumidor custam US$ 12,5 bilhões aos cofres da PDVSA. Um frentista ganha mais de gorjeta que uma das maiores petroleiras do mundo para produzir o combustível.

Em um cenário de recessão, com inflação de 60%, escassez de produtos básicos e queda no preço do petróleo, o presidente venezuelano Nicolás Maduro disse em sua mensagem anual no Congresso que "chegou o momento" de aumentar o preço da gasolina, congelado há quase 20 anos.

"Será feito este ano, sem pressa, mas será feito", disse. Há um temor evidente que este seja um elemento mais de instabilidade para um governo cuja popularidade é de 22%.

O preço da gasolina é visto como um tabu desde 1989, quando um aumento aliado a uma série de medidas de ajuste fiscal detonou uma rebelião popular conhecida como Caracaço. A instabilidade debilitou o governo de Carlos Andrés Perez, que foi deposto do cargo meses depois.

O último reajuste de preços, no entanto, ocorreu em 1996, sem grandes traumas.

Na esteira da bonança petroleira, o ex-líder venezuelano Hugo Chávez governou durante 15 anos e jamais ousou tomar a medida. A crise, no entanto, obriga a seu herdeiro político a tomar tal decisão.

Especialistas apontam que o "preço justo" deveria alcançar ao menos o custo de produção, que é de 2,7 bolívares por litro (US$ 0,4 dólares) deixando atrás o preço atual de 0,097 bolívares por litro (US$ 0,02).

Esse aumento ainda seria insuficiente para tirar da Venezuela o título de país com a gasolina mais barata do mundo.

Escassez

Pedro não vê como um problema o aumento da gasolina. "Quanto poderão aumentar, a 4 bolívares? Se a passagem de ônibus custa 8 e ninguém reclama, por que não aumentar?".

Mesmo com o preço mais alto, ele acredita que o contrabando continuará sendo rentável.

Cada vez que o motoqueiro cruza a fronteira, aproveita a viagem para comprar em Cúcuta alimentos que já foram contrabandeados para o país e que, por isso, não são encontrados nos supermercados venezuelanos. Ele se queixa dos contrabandistas de alimentos. "Ninguém come gasolina, mas mexer com alimento é coisa séria".

Com uma economia dependente do petróleo, 70% do consumo venezuelanos provém de importações. Desse total, de acordo com cifras oficiais, 40% dos produtos – incluindo alimentos e medicamentos, que são vendidos com preços subsidiados pelo governo venezuelano – são contrabandeados para a Colômbia.

"Pagamos até dez vezes mais caro por um produto que saiu da Venezuela, mas fazer o quê? Lá (em Cúcuta) não falta nada", diz Pedro.

Com o tanque vazio, ele tira da mochila uma garrafa plástica com meio litro de gasolina, abastece e pega a estrada de volta. "Essa é minha reserva estratégica."