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Abrigo na Tanzânia protege meninas de 'temporada de mutilação'

BBC
Imagem: BBC

01/04/2015 11h43

Meninas em algumas partes da Tanzânia são frequentemente forçadas a se submeter à mutilação genital feminina (FGM), ainda que a prática seja proibida por lei. Muitas não têm para onde fugir. Até agora. Um refúgio foi criado no norte do país para oferecer proteção às meninas que fogem.

"Meus pais me disseram que eu deveria ser mutilada porque tinha terminado minha educação primária e atingido a maturidade. Queriam que eu me casasse, mas eu disse que não. Isso enfureceu o meu pai", conta Veronica, uma menina de 14 anos.

Ela fala rápido, quase sem respirar.

"Meu pai começou a me dar surras. Decidi fugir. Ele dizia que com a FGM eu teria um maior dote. Seriam cinco vacas, que meu pai venderia para mandar meu irmão para uma escola particular".

"Pedi que ele me deixasse ao menos continuar meus estudos, pois aí poderia ter uma carreira bem-sucedida e ajudar a família. Minha mãe tentou me ajudar, mas isso enfureceu meu pai tanto que ele desferiu uma série de socos e chutes nela".

Fuga

Veronica é uma das 134 meninas que estão abrigadas em Mugumu durante as seis semanas da chamada "estação de corte", que tradicionalmente ocorre a cada dois anos no distrito de Serengeti.

Todas as meninas trazem histórias sobre a pressão exercida por parentes para que elas se submetessem à FGM. Na Tanzânia e em outros países africanos, a mutilação é um tradicional pré-requisito para que mulheres se casem.

Veronica aprendeu sobre FGM na escola. Ela sabia que a prática é perigosa e ilegal. Disse ao pai que o denunciaria à polícia. A reação dele foi rápida.

"Ele me prendeu em casa por dois dias enquanto buscava por alguém para fazer a mutilação. Quando eles voltaram, eu os enganei. Disse que precisava ir ao banheiro. Fugi e me escondi no mato, mas havia hienas por perto. Não era um local seguro", conta.

Um voluntário do abrigo soube da história e pôs Veronica em um ônibus para Mugumu. O abrigo conta com uma rede de "informantes" em aldeias da região. Em geral, são homens que viram a dor causada pela FGM, os sérios problemas de saúde que a prática pode causar e, em alguns casos, a morte por infecção ou hemorragia.

Rhobi Samwelly coordena o abrigo, fundado pela Igreja Anglicana, mas ajudado financeiramente por outras igrejas e mesmo a mesquita local. O desespero que ela vê nas meninas que chegam serve de recordação de sua própria impotência quando criança: aos 13 anos, Samwelly foi submetida à mutilação por seus pais. Ela quase morreu por causa de um sangramento.

Sendo assim, Samwelly sabia que as meninas em seu distrito precisavam de um refúgio. Ela só não esperava que tantas fossem aparecer. O abrigo foi projetado para 40 meninas e a lotação obriga duas ou três meninas a dormirem na mesma cama. Algumas têm de dormir em colchões no chão. Nenhuma das meninas, porém, parece preocupada. Elas sabem que têm sorte por chegar ao abrigo.

Dirigindo um jipe velho pela estrada de terra esburacada, Sofia Mchonvu está a caminho da aldeia de Masinki.

Ela é uma assistente social empregada pelo abrigo para servir de intermediárias com as famílias das meninas que vieram de lá. Ela alerta os pais sobre os perigos da FGM, incentivando os pais a dar às filhas oportunidades educacionais em vez de casá-las cedo. A assistente também avalia se é seguro para as meninas voltarem para casa.

Mchonvu é saudada cordialmente pelos pais de Veronica no lado de fora de seu casebre de barro. Eles estão feliz em saber que a filha está bem.

"(A mutilação) É pressão da nossa família e da nossa cultura", conta Mokiri, o pai de Veronica.

Gado

Ele diz que agora está a par dos perigos da FGM. "Não vamos mais seguir essas normas e esses costumes. Temos uma nova família. Vamos proteger Veronica".

O pai também promete que não vai forçar as irmãs mais novas de Veronica a se submeter à mutilação.

Ainda assim, Mchonvu não acredita que seja a hora certa de levar a menina de volta para casa.

No caminho de volta para Mugumu, a assistente social faz uma parada para se encontrar o pai de uma menina de 15 anos, Nyangi, que entregou a filha para o abrigo depois de descobrir que seus filhos estavam tentando forçar a menina a ser mutilada e se casar.

Na cultura da etnia Kurya, a família da noiva recebe gado como dote. Os irmãos de Nyangi planejavam usar as vacas para atrair esposas para eles.

O pai de Nyangi, que vive com a segunda mulher e longe da família, conta para Mchonvu que ele conversou com os filhos, explicando que a FGM é errada e que os meninos não deveriam depender de uma eventual dote da irmã.

"Não quero que Nyangi se case antes de 28 ou 30 anos. Gostaria que ela estudasse para ser enfermeira", conta.

Samwelly está determinada a proteger meninas como Nyangi de casamentos precoces. "FGM e casamentos infantis são proibidos em nosso país. Vou trabalhar para salvar essas meninas", afirma.

A menina mais nova no abrigo é Boche, de 10 anos. Ela manca e tem um grande curativo numa das pernas. O pai dela a atacou com um machete porque a menina se recusou a se submeter à FGM.

"Foi algo muito sério e a menina não conseguia andar. Levamos ela para o hospital e ela ficou duas semanas internada".

Barreira cultural

No final da "temporada de corte", meninas que foram forçadas ou convencidas a mutilarem suas genitálias começam a aparecer. Em suas viagens, Samwelly para para conversar com elas. Brinca e dança com elas, mas também aproveita a oportunidade para conversar sobre os problemas que as meninas agora enfrentam.

"Sinto-me mal, porque sei que é tarde demais para elas".

A FGM é ilegal mas as autoridades dizem há grandes obstáculos para interromper a prática. "O problema é que a mutilação muitas vezes é feita de maneira secreta. A polícia não tem como ir de casa em casa para saber se está acontecendo ou não", explica John Henjewele, comissário de polícia destacado para a região de Serengeti durante a "temporada de corte".

Isso explica por que apenas cinco casos de FGM foram registrados na região. Questões culturais impedem também que lideranças se pronunciem publicamente contra a mutilação. Henjewele, porém, é do sul da Tanzânia, onde a FGM não é praticada, então fala livremente. Ele apoia o abrigo de Mugumu e se orgulha do fato de escolas da região educarem as meninas sobre a mutilação.

Com o fim da "temporada de corte", mais de 100 meninas já deixaram o abrigo e seus pais assinaram uma declaração para a polícia prometendo que vão proteger suas filhas da FGM.

Veronica e Nyangi, porém, ficaram com Samwelly. Veronica está aprendendo a costurar e cozinhar profissionalmente, enquanto Nyangi frequenta a escola secundária - que não é compulsória na Tanzânia e da qual muitas crianças estão excluídas. Trinta outras meninas continuam no abrigo. Já Boche mora com a mãe - o pai foi preso.

Há rumores de que mais de 15 meninas morreram durante a "temporada de corte" em Serengeti.