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Por dentro do submundo do tráfico de pessoas no deserto do Saara

Alex Duval Smith

Da BBC África, em Gao

21/04/2015 16h57

A cidade de Gao, no nordeste do Mali, é a porta de entrada do Saara para muitos imigrantes africanos que tentam chegar à Europa. Mas a travessia do deserto pode ser tão perigosa quanto atravessar o Mediterrâneo.

A reportagem observa um grupo de jovens está sentado em um complexo de fundo de rua, nervosos e em silêncio. Em um canto do quintal cercado por muros, há uma pilha de galões de cinco litros, cada um com uma capa de pano de saco.

Quando o próximo caminhão estiver pronto para partir para o deserto, os recipientes serão enchidos de água e entregues aos migrantes.

Cada um pagou até US$ 400 (cerca de R$ 1.220) por uma jornada incerta para a Argélia. Eles olham assustados e confusos. A maioria é incapaz de entender o francês que está sendo falado.

O lugar é chamado de "gueto". É o coração do submundo do tráficos de pessoas de Gao.

Centenas de africanos que sonham com um futuro na Europa passam por um dos três "guetos" de Gao a cada mês.

A cerca de 2.000 km da costa do Mediterrâneo, Gao é o último ponto de relativa segurança antes de uma viagem de caminhão de seis dias pelo deserto que tira um número incontável de vidas.

''Eu avalio que os migrantes têm 10% de chance de chegar onde querem ir. Mas é uma escolha deles", diz Moussa, um aliciador (coaxer) de 26 anos.

Seu trabalho é entrar nos ônibus que chegam do sul do Mali e mandar os migrantes para seu chefe do gueto.

''Você entra no ônibus cerca de 20 km antes de Gao. Você anda entre os assentos dizendo que foi enviado por Abdoulaye ou Ibrahim - qualquer nome comum do Mali serve - e que você está lá para cuidar de jornada deles."


"Os caras levantam as mãos'', diz Moussa, que recebe 5.000 francos CFA (cerca de R$ 30) por cada migrante que leva para o chefe do gueto.

'Cidade da cocaína'

Gao é uma cidade de prédios baixos e ruas largas de terra vermelha. Sua economia é em grande parte baseada no tráfico. Humanos são comercializados aqui como barris de combustível e caixas de macarrão ou frigoríficos da Argélia.

É um ponto de passagem conhecido para o lucrativo comércio de drogas da América do Sul, na medida em que tem um subúrbio conhecido como "Cocainebougou" - Cidade da Cocaína - onde casas de dois e três andares contrastam com o entorno poeirento.

Com tanta coisa em jogo, Gao passou por terríveis combates quando rebeldes sob várias bandeiras- tuaregues separatistas e islâmicos - varreram o norte do Mali em 2012, levando a uma intervenção militar francesa no ano seguinte.

O agenciador que passa a bordo do ônibus antes de chegar a Gao explica a ordem relativa em uma garagem de ônibus dirigida pela Sonef Transport em Gao.

Vejo três homens jovens, com quase nenhuma bagagem e vestindo roupas com as quais claramente dormiram, sendo levados para um táxi.

O mecânico-chefe Sardou Maiga diz que as redes de tráfico usam o cansaço dos migrantes e sua ignorância de geografia.

"Os que você acabou de ver compraram passagens de ônibus de Bamako (capital do Mali) até a Líbia. Nós temos um serviço de ônibus para Niamey (a capital do Níger) e daí até Arlit, na fronteira com a Líbia", diz ele.

"Mas os passageiros têm de trocar de ônibus aqui em Gao e é aí que os aliciadores os desviam e os vendem para caminhoneiros tuaregues que vão para a Argélia."

"Eles podem morrer nessa jornada, porque, se houver dificuldades, os pilotos vão abandoná-los pelo caminho no deserto."

Os migrantes muitas vezes não sabem sequer que há um deserto pela frente. Menos ainda que os traficantes dirão, a 100 km da fronteira da Argélia, para que eles desçam e sigam a jornada a pé.

Depoimento: Theodis Windel Dennis, 26 anos, da Libéria

"Eu tinha US$ 1.000 quando saí da Libéria, há uma semana. Fui para o Senegal, onde paguei US$ 400 por uma passagem para ir para o Marrocos. Mas fui enganado. Havia muito mais para pagar depois. Então fui para Bamako e paguei pelo transporte até a Argélia.

Havia entre 15 a 20 pontos de verificação até o Mali. Em cada um, o Exército do Mali te assedia por dinheiro - você precisa pagar entre 1.000 e 5.000 francos CFA ou eles te tiram do ônibus.

Quando o ônibus chegou a Gao, roubaram minha bolsa com meu telefone, o creme do meu cabelo, o resto do meu dinheiro e meu passaporte. Mas eu vou continuar... preciso achar um trabalho na Argélia.

Quero ir para a Europa; quero trabalhar por dinheiro. Eu estudei, me formei no ensino médio. Minha mãe é muito velha, meu pai morreu, então tenho muita dificuldade na Libéria. Não me importo se é perigoso; não tenho medo. Só preciso sair da África."

'Voltar é vergonhoso'

Ibrahim Miharata, de 45 anos, é gerente do Direy Ben, que significa que "o caminho para a fortuna chegou ao fim", um albergue para os migrantes que estão com a sorte em baixa.

Ele tem financiamento da Cruz Vermelha do Mali e da Igreja Católica Romana e pode receber até 70 migrantes.

Miharata diz que tem visto muitas pessoas chegando de Gâmbia recentemente.

"Muitos retrocederam após terem tido os planos adiados pela guerra na Líbia", diz o gerente do albergue.

"Quando eles voltam para Gao estão muitas vezes desesperados e, às vezes, mentalmente perturbados."

"Imagine alguém que deixou sua família há um ano. A família vendeu duas cabeças de gado para bancar sua viagem."

"Ele recebeu US$ 800 ou US$ 1.000. E agora tem que voltar para casa sem um centavo. É vergonhoso. É o suficiente para fazer você ficar louco."

Miharata calcula que até 900 migrantes africanos passem por Gao a cada mês e deixem o local em caminhões até a estrada para Kidal e o Saara, com destino a Tamanrasset, na Argélia.

Outros - aqueles que ficam nos ônibus da Sonef - continuam para o leste em direção ao Níger e à Líbia.

"A razão para que Gao seja um ponto de trânsito crucial para o comércio é que ele oferece uma das travessias do deserto mais baratas e curtas - cerca de cinco ou seis dias", diz Miharata.

"Assim, mesmo se você vem da Eritrea, você pode atravessar o deserto a partir daqui. Tudo depende de que conselhos você recebe pelo caminho."

Ele estima que Nigéria, Camarões e Gâmbia são os três principais países cujos jovens homens - principalmente - estão deixando a região desta forma.

"É difícil ser categórico porque migrantes mentem sobre sua origem. Mas a maioria, certamente, fala inglês como língua nativa."

Embora ele tenha um albergue para os migrantes em dificuldades, ele também é dono de um ônibus que vai para Kumasi, em Gana.

"O Diary Ben ajuda a pessoas em dificuldades, mas eu também sou um ex-migrante - eu fui para a Tunísia e a Costa do Marfim, no meu tempo - e eu sou a favor da livre circulação de pessoas '', diz Miharata.

"Se você quiser ganhar a vida em Gao, o negócio da migração é sua única opção."