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"Família, escola e Estado falharam com suspeito de crime na Lagoa", diz educadora de vítimas da Candelária

Pilar Olivares/Reuters
Imagem: Pilar Olivares/Reuters

Jefferson Puff

Da BBC Brasil no Rio de Janeiro

23/05/2015 12h05Atualizada em 25/05/2015 11h49

Fundadora do projeto onde estudavam crianças mortas na chacina da Candelária, a educadora Yvonne Bezerra de Mello diz que a história do adolescente suspeito de matar a facadas um médico na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, mostra como "a família, a escola e o Estado falharam".

Jaime Gold, 57, foi morto quando andava de bicicleta na Lagoa Rodrigo de Freitas, em um caso que chocou o país.

O principal suspeito do crime, de 16 anos, tem 15 anotações em seu histórico criminal e já havia sido internado em instituições para adolescentes pelo menos nove vezes.

Segundo a imprensa local, ele abandonou a escola em 2013, só viu o pai duas vezes na vida e, aos dez anos, foi encontrado perambulando pelas ruas do bairro do Leblon à noite com fome e sem dinheiro para voltar para casa --sua mãe foi notificada por abandono de incapaz.

Após a última internação, que durou menos de um mês, no início deste ano --por furto de bicicletas na zona Sul do Rio-- foi encaminhado para uma instituição onde ficaria em semiliberdade, mas acabou fugindo.

Yvonne, fundadora do Projeto Uerê, diz que a história do menino é um "retrato da falência do Brasil."

"Tudo falhou na vida dele, e é preciso perceber que parte da culpa também é nossa, é da sociedade", afirma. "A rua embrutece, torna a criança selvagem, a coloca em contato com a droga e gradualmente banaliza a violência e a morte", completa.

Veja os principais trechos da entrevista:

BBC Brasil- O Rio tem visto uma onda de esfaqueamentos e assaltos, muitos deles perpetrados por jovens e adolescentes. Quem são esses garotos? É possível traçar um perfil? Na sua experiência, o que leva um jovem a cometer crimes como estes?

Yvonne Bezerra de Mello - Estamos falando aqui de filhos de famílias onde invariavelmente falta o pai ou a mãe, e na minha escola, por exemplo, em 70% dos casos a ausência é paterna. São crianças criadas por tias, avós, parentes, pelos irmãos, e por mães negligentes, que muitas vezes consomem drogas, e que precisam sair para trabalhar, em geral como faxineiras em bairros da Zona Sul do Rio, o que as deixa praticamente o dia todo fora de casa.

São crianças que crescem num ambiente de violência constante. Dentro de casa é comum apanharem, e muito. Fora, há tiroteios e a banalização das agressões e da morte. Num dado momento, a frequência escolar, que já tende a ser irregular, vai a zero e elas abandonam a escola por completo.

Aos 11, 12 anos, querem um tênis, uma roupa, ou precisam ajudar em casa. A maioria começa vendendo bala no trânsito, mas não raro percebem que roubar é mais rápido e lucrativo, e há também a influência de aliciadores e dos receptadores de celulares, cordões de ouro e bicicletas.

Há uma frustração. É pedir e receber não, é ver que o outro tem e você não. É ficar com migalhas, ser humilhado, violentado. Um dia essa série de nãos e portas fechadas tem um reflexo, que costuma ser negativo.

Após crescer com estas características, onde todos os mecanismos falharam, seja a família, a escola ou o Estado, e a violência é constante, é comum que na adolescência eles queiram sair de casa, e se isso se concretizar, com a migração para a rua, a coisa só piora.

Chega o primeiro roubo, o primeiro dinheirinho, e começa um processo de embrutecimento, de se tornar selvagem. Esse jovem não vai matar logo de cara. São anos em contato com a violência que aos poucos viram um ciclo difícil de inverter. Há muita revolta, baixa autoestima, abandono, frustração. Ele não aguenta mais ficar em casa e acha que a rua e o crime serão a liberdade, mas é um equívoco. Aos poucos, matar também pode se tornar algo mais próximo da realidade deles, sobretudo com a influência da droga.

BBC Brasil - A senhora menciona "falhas". Como a família, a escola e o Estado contribuem para este cenário negativo?

Yvonne - A responsabilidade da família, por mais desestruturada que seja, é garantir que essa criança esteja indo à escola, e protegê-la da violência ao menos dentro de casa. O papel da escola é se perguntar por que esse aluno parou de frequentar as aulas, ir atrás, investigar. O Estado tem assistentes sociais, que precisavam atuar junto a essas famílias. E após a primeira internação, o primeiro crime, as instituições têm a missão de recuperar, de ressocializar essa criança, esse adolescente.

Se todos esses mecanismos não falhassem, talvez esse menino não tivesse voltado a roubar, e o ciclo poderia ter sido interrompido. Estes atores falharam ao desempenhar seus papéis na sociedade, falharam ao impedir que algo problemático se agravasse mais ainda.

BBC Brasil - Mas desta forma não se está também isentando a responsabilidade do adolescente, que aos 16 anos tirou a vida de uma pessoa inocente?

Yvonne - Não estou passando a mão na cabeça, em momento algum. Não estou tirando a culpa do autor desse crime. Essa pessoa precisa ser identificada e punida, sem dúvida alguma. O que estou dizendo é que essas crianças e adolescentes são vítimas do sistema, de uma estrutura cruel que o Brasil tem.

Veja o que aconteceu. Horas após o crime, a polícia encontrou uma casa repleta de bicicletas e facas. Se foi tão fácil encontrar, por que não fizeram isso antes, desmantelando os receptadores dessas mercadorias? Alguém sabia e não fez nada. É disso que estou falando. De omissão, de negligência, das falhas.

É fácil penalizar e demonizar os que estão na rua, os infratores, mas a sociedade fez com que ele fosse para a rua. Nós também somos culpados. Precisamos sair do marasmo e de apenas cobrar resultados dos impostos pagos e fazer algo, de fato, para melhorar a sociedade.

BBC Brasil - O adolescente tinha 15 anotações criminais e ao menos nove internações em instituições para menores. Como são estes locais? Há possibilidade real de recuperação e ressocialização?

Yvonne - Eu conheço todas as instituições de internação e recuperação do Rio de Janeiro. Nenhuma faz o papel que deveria fazer. Tanto os abrigos quanto as instituições são muito ruins. Não há pedagogia específica, não há método. Há muito abuso sexual entre os próprios menores, um sodomiza o outro contra a vontade. Há violência. E é impossível recuperar qualquer adolescente num local com 1.500, 700, 600 internos. É absurdo achar que qualquer profissional desenvolverá um trabalho nessas condições.

A verdade é que a criminalidade, o uso de armas de fogo e facas por crianças e adolescentes está aumentando muito, no país todo, e ninguém sabe o que fazer.

BBC Brasil - Neste cenário, o debate em torno da redução da maioridade penal tende a ganhar força. Casos como o da Lagoa tendem a ser usados como argumento pelos dois lados, tanto por quem é contra como a favor da mudança na lei. Como a senhora se posiciona?

Yvonne - Mais uma vez, não estou justificando o crime de adolescentes, que precisa ser punido, mas a questão é como punir, onde punir, como recuperar. Defendo uma punição maior do que a atual para crimes hediondos, por exemplo, até porque todo mundo concorda que um garoto de 16 anos sabe muito bem o que faz.

Mas a resposta não é reduzir a maioridade penal. Temos crianças de dez anos com armas, então se dermos início, vamos ter que abaixar a maioridade cada vez mais. Mas pense, com a redução, onde vamos colocar esses jovens? Nosso sistema carcerário está esgotado, falido. As instituições de menores abarrotadas, ineficientes. São fábricas de bandidos? Óbvio que sim.

BBC Brasil - Mas então o que a senhora sugeriria, com base em seus 20 anos de experiência com menores em situação de vulnerabilidade social, justamente o grupo que tem forte potencial para enveredar pelo mundo da delinquência juvenil?

Yvonne - Punição maior para adolescentes que cometem crimes hediondos. Instituições menores. Mais instituições, com número menor de internos, onde se possa de fato fazer um trabalho real e eficiente. Aí sim podemos começar a ver uma luz no fim do túnel.

É preciso haver acompanhamento educacional, psicológico, psiquiátrico, tratar violações, abusos, exposição à violência extrema, revolta e frustração de anos e anos. Precisa acompanhar essas famílias. A escola precisa ser atuante. Custa dinheiro. Precisa querer investir. Quem sabe assim possamos evitar que uma criança apreendida por um roubo venha a assassinar alguém anos depois.

BBC Brasil - O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB), disse nesta semana que um adolescente que mata não revela um "problema social", e sim um "caso de polícia". Como a senhora vê a declaração?

Yvonne - Um absurdo. Totalmente equivocado. É inadmissível que o prefeito de uma cidade com mais de dois milhões de favelados que vivem diariamente com uma série de problemas sociais diga uma coisa dessas. É caso de polícia? Claro que é. Houve uma morte. Precisa haver investigação e punição. Agora, o que ele fez foi se eximir da culpa de não ter feito o trabalho social que sabe que deveria fazer, que é sua responsabilidade fazer.

BBC Brasil - Na visão da senhora, o que este caso da Lagoa diz sobre nossa realidade? Quais são suas perspectivas para o Brasil e o Rio de Janeiro no que diz respeito à criminalidade entre os jovens e adolescentes?

Yvonne - O que aconteceu é um retrato da absoluta e total falência da nossa sociedade. A falência do Brasil, da ética, de políticas públicas sérias, que funcionem. Esse caso e a história do menino suspeito representam tudo isso. As falhas, a ineficiência, a negligência, a corrupção, a omissão em se fazer o certo.

Quanto ao futuro, eu não diria que sou pessimista em geral, até porque senão não faria o trabalho que faço há mais de 20 anos. Mas sou pessimista quanto aos rumos que o Brasil está tomando. Precisamos de reformas e de instituições que cumpram seus papéis.

No Rio de Janeiro estamos neste momento em que tudo está mascarado e maquiado para as Olimpíadas, e só vai piorar. Vão recolher os mendigos, as crianças de rua, trazer milhares de militares e policiais, e fazer um espetáculo para o mundo ver, em segurança. Mas nós sabemos que assim que a festa acabar, tudo volta a ser como era antes.