Como dois homens sobreviveram à prisão onde 12 mil foram mortos
A prisão de Tuol Sleng é a mais conhecida do Camboja: na década de 1970, pelo menos 12 mil pessoas foram torturadas e mortas no local.
Poucos prisioneiros sobreviveram. Mas agora, quando se completam 40 anos desde que o líder linha-dura Pol Pot tomou o poder no país, dois desses prisioneiros têm voltado às celas da prisão todos os dias, para recordar a população sobre o passado obscuro do Camboja. Veja a história deles a seguir:
Chum Mey nunca tinha ouvido falar da CIA, mas, depois de dez dias de tortura, ele estava pronto para confessar que era um agente secreto dos Estados Unidos.
Estamos na prisão de Tuol Sleng, em Phnom Penh, na cela onde Mey ficou preso. Quase quatro décadas depois, ele ainda tem pesadelos.
"Se os guardas (da prisão) não tivessem me arrancado um falsa confissão com torturas, eles teriam sido executados - não posso dizer que, no lugar deles, eu teria me comportado de forma diferente", afirmou.
Pelo menos 12 mil pessoas presas em Tuol Sleng foram mortas, e apenas 15 prisioneiros sobreviveram.
Chum Mey, hoje com 83 anos, e Bou Meng, 74, são dois deles.
Um é mecânico, o outro, um artista. Como suas habilidades eram úteis para o regime do país, suas sentenças de morte foram adiadas.
Nos últimos três anos, os dois começaram a trabalhar na antiga prisão, hoje um museu dedicado a contar a história do genocídio ocorrido no Camboja sob o brutal regime comunista do Khmer Vermelho, que exterminou estimados 2 milhões de pessoas.
"O importante é documentar o que aconteceu aqui. Quero que as pessoas no mundo todo contem aos amigos e familiares sobre o genocídio", disse Bou Meng no pátio da prisão.
Fotos e livros
Os dois entram e saem das celas, agradecendo aos visitantes e analisando as fotografias dos detentos nas paredes.
"Tão jovens", afirmou Chum Mey, tocando uma fileira de fotos de meninos e meninas.
Chum Mey trabalhava como mecânico para o Khmer Vermelho quando, repentinamente, foi preso em 28 de outubro de 1978 e levado diretamente para a S-21, como era chamada a prisão de Tuol Sleng. Ele nunca soube o motivo de sua prisão.
"Colocaram uma venda em meus olhos e minhas mãos foram presas nas costas - pedi para meus captores avisarem minha família onde eu estava."
"O Angkar (o órgão de governo do Khmer Vermelho) vai esmagar todos vocês", sussurrou uma voz no ouvido de Mey.
Ao chegar, depois de serem medidos e fotografados, os prisioneiros tinham que tirar as roupas e eram acorrentados ao chão de uma célula onde mal havia espaço para uma pessoa sentada.
"Depois disso, eu chorei, pois me senti tão confuso e desesperado", disse. Nos 12 dias seguintes, ele foi torturado três vezes em uma das salas de interrogatório da prisão.
A tortura
Dois guardas se revezavam no espancamento de Chum Mey, com um bastão coberto de fios retorcidos. Com o tempo eles decidiram arrancar a unha do dedão do pé do prisioneiros.
O pior ainda estava por vir.
"Eu podia aguentar a dor de ser espancado e até ter minha unha do pé arrancada, mas ficava aterrorizado com os choques elétricos", disse.
Os choques eram dados com eletrodos colocados dentro das orelhas. Chum Mey é surdo de um ouvido como resultado.
"Era como se meus olhos estivessem pegando fogo. Comecei a falar para eles qualquer coisa que quisessem ouvir. Não sabia mais o que era certo ou errado."
Ele se senta na mesa onde a confissão foi datilografada pelos dois interrogadores. Na frente há uma uma cama sem colchão e pesados grilhões de ferro. Há sangue seco no teto e uma foto na parede mostra um homem na cama, com a garganta cortada.
A maioria das pessoas que acabou nestas celas era acusada de colaborar com governos de outros países ou de espionar para serviços secretos estrangeiros.
"O regime era terreno fértil para a paranoia", explica o guia do museu. "Soldados que sabiam demais (sobre o regime) podiam ser submetidos à tortura e até serem mortos."
O outro sobrevivente, Bou Meng, era partidário do Khmer Vermelho e um artista. Ele pintou alguns dos primeiros cartazes de propaganda do regime.
Ele e a mulher foram presos no dia 16 de agosto de 1977.
"Eles gritavam que o Angkar nunca prendia a pessoa errada", disse.
Bou Meng mostra um desenho que fez da sua mulher. "Ma Yoeun", disse ele com lágrimas nos olhos. No desenho ela está gritando, e sua garganta foi cortada.
A maioria dos prisioneiros da S-21 eram levados depois para Choeung Ek, um dos locais que ficaram conhecidos como Campos da Morte. Uma equipe de executores adolescentes estaria esperando e uma grande cova já estaria aberta.
O casal foi separado na chegada à prisão. Ma Yoeun era parteira. As autoridades decidiram na ocasião que valia a pena manter vivo apenas Bou Meng.
"Por que eles não a mantiveram viva também? Ela só cuidava das pessoas", lamentou ele.
Assim como Chum Mey, Bou Meng foi interrogado e espancado - ele mostra a cicatrizes nas costas e conta que também ficou surdo de um ouvido.
Alimentação e trabalho
Os prisioneiros recebiam duas conchas de mingau aguado por dia. Chum Mey sentia tanta fome que comia os ratos que apareciam na cela.
Uma pequena caixa de munição servia como banheiro. "Se alguma coisa espirrasse para fora, tínhamos que lamber o chão", disse.
Bou Meng ainda lembra do cheiro forte no ar. "No começo pensei que era algo como peixe morto ou camundongos, pois nunca tinha sentido cheiro de carne humana apodrecendo antes."
Depois de vários meses de interrogatórios, Bou Meng também fez uma confissão falsa, admitindo ser parte de uma rede da CIA e citando nomes de outros colaboradores.
Sua profissão pode ter salvado sua vida. Quando o diretor da prisão, conhecido como Duch, descobriu que Bou Meng era um artista, disse para ele reproduzir uma foto em preto e branco de Pol Pot e disse que, se a pintura não ficasse parecida, ele seria morto.
Bou Meng fez a pintura em três meses, com 1,5 metro de largura e 1,8 metro de comprimento.
Duch gostou do trabalho e depois pediu retratos de Karl Marx, Lenin, Mao Tsé-tung e outros de Pol Pot.
O diretor manteve Chum Mey vivo pois ele também conseguia consertar máquinas de escrever, importantes para o registro das confissões, e de costura, usadas para fazer os uniformes pretos do Khmer Vermelho.
Tribunal
Em 2009, os dois prisioneiros deram seus testemunhos em um tribunal de crimes de guerra apoiado pela ONU. Contaram sobre Duch, um ex-professor de matemática que se transformou no arquiteto da tortura e dos métodos de execução na prisão.
A S-21 era um microcosmo do que aconteceu no Camboja no regime do Khmer Vermelho. Cerca de 90% dos artistas, intelectuais e professores foram mortos em um esforço para que o país voltasse ao "Ano Zero" - a visão de Pol Pot de uma sociedade agrária e sem classes.
Quando Pol Pot deixou o poder, cerca de 2 milhões de pessoas, um quarto do população, tinham sido assassinadas, mortas de fome ou doenças.
Os dois filhos pequenos de Bou Meng adoeceram e morreram durante o governo de Pol Pot. No julgamento de 2009, ele soube que a esposa provavelmente acabou em uma vala comum.
Chum Mey, por sua vez, encontrou uma cópia de sua confissão e uma lista de prisioneiros. Ao lado lado do nome dele está escrito: "Manter (vivo) por um tempo".
A esposa dele sobreviveu até 7 de janeiro de 1979, quando soldados do Vietnã capturaram Phnom Penh, pondo fim ao regime do Khmer Vermelho.
Os eventos causaram pânico na ala S-21 e os guardas fugiram com os prisioneiros para bairros afastados, aguardando ordens. Chum Mey se encontrou novamente com a mulher e o filho.
Mas apenas ele sobreviveu aos combates entre o Khmer Vermelho e forças opositoras.
O filho de três anos morreu, doente, em 1975. As duas filhas desapareceram enquanto ele esteve preso.
Bou Meng e Chum Mey se casaram novamente e hoje têm novas famílias. Os netos de Chum Mey brincam no pátio da prisão enquanto ele conversa com a reportagem da BBC.
"Visitar (a prisão) todos os dias me aproxima das vítimas naquelas fotos. Sinto a presença delas e nossa responsabilidade em contar ao mundo o que aconteceu", disse.
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