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Depois de 4 anos, Santa Teresa vive 'alegria tímida' com volta do bondinho

Júlia Dias Carneiro

Da BBC Brasil no Rio de Janeiro

28/07/2015 05h22

Um rapaz com macaquinho de atleta corre por Santa Teresa cumprindo etapas de um decatlo "olímpico" no canteiro de obras que virou o bairro, como "marcha sobre trilhos", "400 metros com busão" e "bike na cratera".

São cenas do vídeo "Parque Olímpico de Santa Teresa", do coletivo Mídia Ninja - uma boa dose de humor e ironia para denunciar o longo suplício dos moradores de Santa Teresa, que há quase dois anos amargam uma obra sem fim com ruas abertas, sucessivos atrasos, erros de percurso e dores de cabeça diárias.

Após tanta espera, o bonde enfim volta a circular pelo bairro nesta segunda-feira (27), com a ativação do primeiro trecho dos trilhos em caráter preliminar. De segunda a sábado, das 11h às 16h, ele circulará do largo da Carioca, no centro, até o largo do Curvelo - voltando enfim a passar por cima dos Arcos da Lapa, cartão-postal que ficara vazio sem o bonde amarelinho.

Trata-se apenas de 1,7 km do total de 10,5 km de trilhos que ainda precisam ser entregues. A previsão inicial do governo do Estado era que as obras ficariam prontas para a Copa do Mundo. Agora, nem para as Olimpíadas: na semana passada, o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão (PMDB), disse que a nova previsão é apenas no primeiro semestre de 2017.

A notícia vem a um mês do quarto aniversário do trágico acidente que matou seis pessoas no bonde, em 27 de agosto de 2011, e levou à desativação do bondinho, que, além de ícone e principal meio de transporte do bairro, é um dos grandes símbolos do Rio.

De acordo com o presidente da Associação de Moradores de Santa Teresa, Jacques Schwarzstein, o bairro recebe o primeiro trecho do bonde com "uma alegria tímida", acompanhada do receio de novas frustrações.

"Não podemos nos iludir. Existe uma enorme esperança e vontade de ajudar o governo para que as obras sejam concluídas com segurança e respeito aos moradores", afirma.

"Mas na verdade esse início da operação é em um trecho muito pequeno que vai atender principalmente a turistas e visitantes. Não altera ainda a vida no bairro, e a grande maioria dos moradores vai continuar dependendo dos ônibus, que são muito predatórios para o bairro."

No protesto de maio, um folheto listava as reivindicações da Associação de Moradores de Santa Teresa - como, por exemplo, a elaboração de um projeto executivo para as obras, até hoje inexistente. "Vamos colocar essa obra maluca nos trilhos!", dizia. "Chega de bagunça e incompetência!"

As obras e consequentes interdições têm infernizado a vida em Santa Teresa. As dificuldades de acesso e locomoção afastaram visitantes, trouxeram prejuízo a lojas e restaurantes e geraram queixas de insegurança no bairro.

'Passo o ponto'

A revolta dos moradores teve o ápice entre abril e junho deste ano. Primeiro, foram surpreendidos pela notícia de que o consórcio Elmo Azvi, responsável pelas obras, havia errado na instalação dos paralelepípedos ao longo dos trilhos, impedindo o funcionamento integral do sistema de frenagem dos bondes.

Depois, o consórcio interrompeu a obra após desavenças com o governo do Estado. Por cerca de dois meses, trechos da principal rua do bairro ficaram abertos.

Com crateras abertas na frente da entrada, o restaurante japonês Sansushi, que está no bairro há 15 anos, não aguentou tantas noites às moscas. Logo a placa de "passo o ponto" estava pendurada na fachada.

"Teve duas noites seguidas em que eu não vendi nem R$ 10. Saí do restaurante chorando", conta o dono, o gaúcho Claudio Lucas Figueiredo.

A cratera foi fechada recentemente, mas na semana passada uma britadeira abria novos buracos do outro lado da mesma rua, iniciando a reforma dos trilhos no sentido oposto. Figueiredo diz que o clima é de desânimo e frustração.

"A gente fica sem saber isso vai demorar um ano, dois anos. Antes que eu fique com uma bola de neve gigantesca de dívidas, resolvi parar", lamenta.

Seu vizinho Marco Aurélio Cardoso, dono do restaurante Marcô, diz que seu faturamento caiu em pelo menos 40% e que todos estão tendo "enormes perdas".

"Até o bonde voltar a circular pelo bairro todo, vamos continuar na precariedade. Obra a gente sabe que causa transtorno, mas chega uma hora que termina. Aqui, não. Não tem fim", queixa-se.

Erros de execução

O consórcio responsável pela obra teve que corrigir a falha serrando meio milímetro dos paralelepípedos ao longo dos trilhos. Foi multado duas vezes pelo governo do Estado, no valor total de R$ 1,35 milhão, pelos erros de execução.

De acordo com o secretário estadual de Transportes, Carlos Roberto Osório, o consórcio agora está sub judice até setembro. A continuidade do contrato dependerá do cumprimento de metas estabelecidas até então, afirma.

"O planejamento anterior foi descumprido pelo consórcio em várias etapas. Agora adotamos uma política de tolerância zero", diz Osório à BBC Brasil.

"Temos mecanismos para cancelar o contrato, mas estamos fazendo um esforço para evitar uma nova licitação, o que levaria entre quatro a seis meses."

Perguntado se admite os erros e se a previsão de entregar as obras até 2017 é realista, o consórcio disse à BBC Brasil apenas que "está alinhando com o governo do Estado a definição das frentes de trabalho para cumprir o cronograma para as novas etapas da obra".

"O consórcio possui um contrato assinado com o governo e tem, como princípio, honrar seus compromissos", acrescentou em nota.

Bonde 'chorando'

No largo do Curvelo, a estação do bonde foi toda grafitada e recebeu um memorial em homenagem às seis vítimas do acidente. O rosto sorridente do motorneiro Nelson Corrêa da Silva, que morreu conduzindo o bonde depois que o freio falhou, está pintado em um colorido painel.

Ao longo dos últimos anos, a revolta dos moradores se espalhou por muros, carros e janelas do bairro todo, com cartazes, adesivos e placas pedindo o fim do "caos" e ostentando a onipresente imagem do bonde "chorando", criada no dia seguinte ao acidente pelo artista plástico Zod, morador de Santa Teresa.

"Não consegui dormir naquela noite e criei aquela imagem. No dia seguinte estava todo mundo usando como foto do perfil no Facebook. Quatro anos depois, ainda estamos aqui nessa novela que não vai para lado nenhum", diz ele.

Morador da Casa Coletiva, em Santa Teresa, um dos projetos da rede Fora do Eixo, Filipe Peçanha encarnou o "repórter gringo" no vídeo do Parque Olímpico de Santa Teresa, que viralizou nas redes sociais.

"Santa Teresa é sempre usada para vender o Rio, o bonde foi usado no vídeo promocional para trazer as Olimpíadas para cá. Usa-se o bairro como marketing, mas aqui vemos todo esse descaso. As proporções são descabidas", diz ele. "Só mesmo irreverência e escracho para denunciar isso aqui."

De marchinhas à ararinha Blu

O bonde de Santa Teresa é o único remanescente dos bondes do Rio antigo, criado em 1877, diz o historiador Milton Teixeira. Ele diz que em 1966 apenas duas linhas ainda existiam na cidade, as de Santa Teresa e do Alto da Boa Vista. Uma grande enchente na Baía de Guanabara queimou os motores de todos os bondes e foi o pretexto para o então governador, Negrão de Lima, anunciar seu fechamento.

"Na calada da noite, moradores de Santa Teresa e funcionários da companhia pegaram motores velhos, já obsoletos, fizeram um gato elétrico e colocaram os bondes para funcionar como se nada tivesse acontecido", conta Teixeira. "Essa operação fez com que os bondes de Santa Teresa fossem os únicos a sobreviver no Rio."

O historiador lembra que o bonde já foi personagem de marchinhas de carnaval, novelas e até da animação "Rio", de Carlos Saldanha, o da ararinha Blu.

Jacques Schwarzstein, da associação de moradores, diz que o diálogo com o governo do Estado melhorou após a entrada, em janeiro, de Carlos Roberto Osório na Secretaria de Transportes.

"O governo anterior se recusava a conversar. Agora a interlocução melhorou e isso cria condições para que se cometam menos erros e as obras sejam menos agressivas para os moradores", opina, dizendo-se esperançoso de que a nova gestão aprenda com os erros cometidos.

"Mas ainda temos muito mais incertezas que certezas", lamenta, lembrando que o governo ainda não descartou a possibilidade de romper o contrato com o consórcio. "Não temos segurança de nada."