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Nas redes sociais, feministas evangélicas se unem contra duplo preconceito

A partir da esq., Thayô Amaral, Jordanna Castelo Branco e Luíse Bello: feministas evangélicas se unem contra duplo preconceito - Arquivo pessoal
A partir da esq., Thayô Amaral, Jordanna Castelo Branco e Luíse Bello: feministas evangélicas se unem contra duplo preconceito Imagem: Arquivo pessoal

Camilla Costa

Da BBC Brasil em São Paulo

31/07/2015 09h22

Mulheres religiosas que também se identificam com o feminismo dizem sentir-se minoria nas igrejas e no movimento feminista

"Somos meninas e temos orgulho disso. Discordamos de inúmeras coisas, mas quem aqui foi feito pra apenas concordar? Feministas. Lutamos contra a opressão de milênios de história, e por essa razão somos um pouco loucas. Ainda que revolucionárias, cremos em um Deus soberano e cheio de amor, que traz a todos, mulheres e homens, a misericórdia e a graça, igualmente, sem distinção."

Em grupos de Facebook, mulheres de diversas denominações evangélicas estão se reunindo para falar sobre o desafio de serem feministas. A descrição acima pertence ao maior deles, "Feministas Cristãs", com 400 membros.

"Nós nos sentimos minoria tanto dentro da igreja quanto dentro do movimento [feminista]", disse à BBC Brasil Thayô Amaral, 21, criadora do grupo. Segundo a publicitária goiana, a motivação para criar uma comunidade fechada foram discussões em outros grupos feministas.

"Perguntam como podemos ser cristãs se as religiões cristãs oprimem as mulheres há milênios. Nós tentamos mostrar que existe a religião e existe a fé. A minha fé é a cristã, mas isso não significa que eu concorde com a opressão que a religião impõe às mulheres", afirma.

"No grupo, podemos discutir coisas que não conseguimos nem no meio feminista, por sermos cristãs, e nem no meio cristão, onde sofremos bastante rejeição."

Nos limites "seguros" da comunidade, elas falam sobre passagens da Bíblia que consideram machistas ou feministas, compartilham vídeos "problemáticos" das suas próprias igrejas, mas também exaltam pastores e padres considerados progressistas e tiram dúvidas sobre doutrinas religiosas.

Assuntos como masturbação, aborto, laicidade do Estado e homossexualidade também entram no debate - e provocam discordâncias.

"Acontece muito de as meninas entrarem no grupo, verem os posts e dizerem: 'Aqui tem coisas sobre as quais eu sempre quis falar, mas nunca pude, porque nunca achei ninguém que estivesse disposto a falar comigo sobre isso'", afirma Thayô.

'Paciência'

Para Thayô, a maneira "não positiva" como evangélicas são confrontadas em discussões sobre temas polêmicos nos grupos feministas - "mesmo com boas intenções" - pode afastá-las do debate. Isso acentua a rejeição que muitas sentem dentro das próprias comunidades religiosas.

"O mais frequente no grupo são meninas que não estão se encaixando [nas igrejas], mas não querem se afastar e deixar de praticar sua fé", afirma. Ela mesma, que participava da Igreja Cristã Evangélica do Brasil, diz ser hoje uma cristã pós-denominacional - que não frequenta nenhuma denominação específica.

A dificuldade de conciliar os questionamentos feministas com as doutrinas religiosas também motivou as amigas Jordanna Castelo Branco, 31, e Guísela Araújo, 36, a buscarem denominações evangélicas mais inclusivas.

"Eu nasci na Igreja Batista, cresci na Assembleia de Deus, fui para a igreja Nova Vida e hoje sou de uma comunidade chamada Libertas, que é uma igreja mais alternativa dentro da igreja Presbiteriana", diz Jordanna.

"Desde adolescente, eu questionava o papel da mulher: por que tinha que ser criada para ser uma boa dona de casa se, na escola em que eu estudava, homens serviam o almoço e o jantar? Por que eu não podia usar calças jeans na igreja, se eram muito mais confortáveis? Por volta dos meus 16 anos, havia muitas cobranças para que eu andasse maquiada e soubesse cozinhar. E o meu questionamento causava espanto."

Depois de um período afastada dos cultos, ela decidiu voltar e diz estar mais satisfeita com o diálogo dentro da nova comunidade. Mesmo assim, declarar-se feminista ainda foi um problema.

"Quando eu comecei de fato a me identificar como feminista e assumir isso, eu já estava na Libertas. Mesmo assim, foi uma confusão. Alguns começaram a debochar, as meninas me criticaram. Foram dois amigos homens da igreja, que são mais ligados a movimentos sociais, que me defenderam. E aí a discussão começou e, algum tempo depois, outras mulheres começaram a se assumir como feministas também", conta.

A fluminense Guísela Araújo assumiu-se como feminista após uma tragédia pessoal. Em 2010, sua irmã foi assassinada por um ex-namorado. Hoje, ela diz sentir que não encontra um lugar "nem dentro da igreja, nem fora". Mesmo assim, pretende continuar tentando.

"Estou buscando uma igreja, porque é difícil encontrar um espaço em que eu consiga atuar com liberdade, dentro das coisas que eu acredito. Nasci na Assembleia de Deus, mas falar de feminismo lá é muito complicado. A igreja é onde eu quero estar porque acho que há muito a ser feito."

No entanto, ela diz que resposta de outras feministas em debates sobre religião desestimula o ativismo. "Em várias discussões na internet mesmo, vejo que não dão muito valor ao meu discurso porque sou cristã. E nem acreditam que uma mulher possa fazer a escolha pelo cristianismo", afirma.

"Eu até entendo as mulheres evangélicas que torcem o nariz para o feminismo porque não conhecem. E acho que poderiam ter mais paciência e boa vontade com as feministas. Mas acho também que falta às feministas mais paciência e boa vontade com as religiosas. A tolerância é algo que a gente vai construindo."

'Feminista perfeita'

Segundo a cientista política Rayze Sarmento, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), os embates com a religiosidade de algumas mulheres não significam que o feminismo é intolerante. "É um pouco natural que esses embates ocorram. A própria história do feminismo é lidar com as diferenças e com questões muito sensíveis", disse à BBC Brasil.

"Quando o feminismo surge como bandeira política, é marcado pela história de vida das mulheres brancas e de classe média. As líderes feministas negras, por exemplo, diziam que tinham dificuldade de lidar com os homens no movimento negro e com as brancas no movimento feminista."

"Mas isso não o torna o movimento mais frágil, pelo contrário. Essas diferenças o tornam um movimento muito potente, até porque desmistifica a ideia de que todas as mulheres são iguais", conclui.

A publicitária carioca Luíse Bello, 26, no entanto, reclama do que diz ser "uma visão muito superficial sobre as igrejas evangélicas no Brasil" em debates dos quais participou.

"Na igreja que eu frequento desde criança nunca enfrentei nenhum problema por ser feminista. Tive muito mais problemas me assumindo evangélica em algumas ocasiões do que dizendo que sou feminista na igreja", afirma.

Para ela, a resistência aos evangélicos é mais forte "por causa de uma bancada conservadora no Congresso, porque muitas igrejas evangélicas estão na TV colocando seus discursos e pela maneira estereotipada" como são retratados pelos meios de comunicação.

"Frequento uma denominação com uma doutrina rígida em alguns aspectos. Realmente, se a gente for pegar as coisas que são esperadas das mulheres segundo a doutrina, elas não se encaixam muito com algumas ideias do feminismo. Mas eu fazer parte da igreja não faz de mim menos feminista", diz.

"Você diz que é evangélico e logo vem à cabeça a imagem de alguém que é um tonto doutrinado e não consegue enxergar além do que o pastor fala. Isso me cansa muito. Eu sou de uma igreja que é completamente apolítica. Não podemos, pela doutrina, misturar Estado e religião. Isso as pessoas nem sabem que existe."

Grupos como o "Feministas Cristãs", ela diz, ajudam a lidar com os dilemas de quem tenta conciliar as duas posições.

"Eu não sou uma feminista perfeita. Eu também não sou uma cristã perfeita. Eu quero ser, estou me esforçando. Mas eu sou uma pessoa. Eu não tenho todas as respostas."