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Imigrantes se tornam mediadores para ajudar refugiados na Itália

Carolina Montenegro

De Catânia para a BBC Brasil

04/10/2015 07h01Atualizada em 04/10/2015 07h36

Ahmad Al Rousan ouviu de pescadores na Tunísia no mês passado que corpos estavam enroscando em suas redes.

Ele trabalha como mediador cultural para a ONG Médicos sem Fronteiras (MSF) na Itália. Isso significa que ele é um dos primeiros pontos de contato daqueles que chegam à Europa. Faz traduções do árabe para o italiano e auxilia os refugiados com atendimentos psicológicos e de primeiros socorros.

São sessões em que os recém-chegados relatam traumas e experiências para equipes de psicólogos e mediadores culturais. Os encontros acontecem no Centro Baobab, em Roma, criado em junho por voluntários italianos para fornecer comida e abrigo aos refugiados que chegam à capital italiana.

Atualmente, o local abriga cerca de 200 pessoas, que vêm da Eritreia, Darfur (no Sudão) e Nigéria. A maioria atravessa o mar Mediterrâneo pela Líbia, onde relatam sofrer espancamentos, sequestros e estupros por traficantes de pessoas.

"Todas as pessoas que encontrei ali viram alguém morrer. Seja no deserto durante a travessia até chegar à Líbia ou no mar, tentando chegar à Europa", disse Rousan à BBC Brasil.

Horrorizado com as mais de 3 mil mortes de imigrantes no mar neste ano, ele diz que a situação está piorando. "É preciso que a Europa se organize e crie rotas seguras para a travessia. Apenas aumentar os resgates no mar não basta", diz.

Mediação em alta

Rousan está na organização MSF há três anos. Já trabalhou na ilha de Lampedusa, na Sicília, e a bordo do barco de resgates Bourbon Argos, lançado pelo grupo em julho no Mediterrâneo.

"Uma vez resgatamos uma menina nigeriana que tinha escrito seu nome, telefone e endereço no colete salva vidas que vestia. Era para seu corpo ser reconhecido e devolvido a sua família se ela morresse durante a jornada", conta Rousan.

Segundo ele, os refugiados têm de comprar os coletes dos traficantes na Líbia por cerca de US$ 20.

Nascido na Jordânia, Rousan fala italiano, árabe e inglês. Decidiu se formar e ser mediador cultural depois do 11 de setembro de 2001. "Foi quando vi a distância enorme que havia de cultura e comunicação entre o Ocidente e o Oriente Médio e a África."

Mestrados em mediação cultural são novidade na Itália, mas cresce a procura pelo curso, dada a demanda em alta por profissionais da área.

A imigrante síria Salima Karroum, 38, também trabalha como mediadora nos portos da Sicília. Permanece 24h de plantão todos os dias. O chamado é curto e claro, feito por telefone celular: "um barco com imigrantes foi resgatado e está a caminho do porto".

Ela se junta à equipe da ONG italiana Emergency, responsável pelos primeiros socorros oferecidos em terra aos imigrantes e refugiados resgatados no mar Mediterrâneo, e entra em ação.

Geralmente os desembarques nos portos acontecem menos de 24h após a organização receber um aviso da Guarda Costeira italiana.

Imigrante síria, Salima vive na Itália desde os 18 anos com a família. Seu pai é sírio e sua mãe italiana. Nas férias, antes da guerra, viajavam com frequência entre os dois países. Com o avanço da crise dos refugiados, ela não pode mais visitar seu país. Na Itália inventou uma "ponte" e decidiu trabalhar como mediadora cultural nos portos da Sicília.

Ela acolhe as famílias refugiadas, assistindo no primeiro atendimento médico - que é feito nos portos por clínicas móveis da ONG Emergency - e fornece informações básicas sobre como funciona o sistema de saúde italiano.

"Poder abraçar as famílias é uma experiência muito forte. Há anos deixei a Síria e ver tantas vidas destruídas, tantas pessoas chegando, crianças, mulheres, velhos, é impressionante. São pessoas em busca de esperança, é isso que tento transmitir a eles: esperança. Há uma dor e uma alegria imensa em acolhê-los", disse.

Salima se lembra emocionada de pessoas que chegaram da região de Latakia, sua terra natal. Podiam ter sido vizinhos seus, colegas de classe, em outros tempos. Ela também se lembra de muitos adolescentes e mulheres com crianças pequenas chegando, mas se diz contente por não ter testemunhado nenhum caso de criança desacompanhada nos barcos de resgate.

Para ela, ser mulher facilita o trabalho de mediação, principalmente em relação a questões médicas. "Nem sempre uma refugiada se sente à vontade para ser atendida por um médico homem. Tenho que explicar como aqui na Itália não importa o sexo do médico, mas o tratamento que ele está providenciando."

O contrário, porém, também já aconteceu, e Salima teve que intervir com traduções e explicações médicas para um refugiado sírio que não queria ser atendido por uma médica mulher.

Trabalho crucial

Além de Salima, também trabalham na Sicília como mediadores culturais da ONG italiana Khalid Boujir, 41, marroquino, e Yohanes Ghebray, 25, eritreu.

"Todo dia nosso trabalho é diferente; é um desafio constante. Para conseguir a confiança dos refugiados, explicamos que o trabalho da ONG trata-se exclusivamente de assistência médica humanitária e deixamos claro que não somos policiais ou autoridades do governo italiano", disse Ghebray.

Segundo ele, nos últimos dois meses, a maior parte dos resgatados e socorridos nos portos da Sicília vinham da Síria e da Eritreia - dois países que enfrentam prolongados conflitos e graves violações de direitos humanos.

Desde julho deste ano, a ONG oferece tratamento médico gratuito em clínicas móveis aos refugiados recém-chegados nos portos de Augusta e Catânia. A organização conta hoje com cinco clínicas móveis em toda a Itália e registra mais de 39 mil consultas desde abril de 2011.

Dos mais de meio milhão de refugiados e imigrantes cruzando o Mediterrâneo de barco para chegar à Europa neste ano, estima-se que 131 mil tenham desembarcado na Itália.

O país europeu só perde em chegadas para a Grécia, em meio a maior crise de refugiados do continente desde a Segunda Guerra Mundial.

"Os mediadores culturais são cruciais. Eles são um link vital entre os pacientes e os médicos. Há diferentes abordagens para a medicina e os tratamentos médicos no Ocidente e no Oriente, por exemplo. O que nós consideramos como o coração, outras culturas acreditam que é o estômago", diz Andrea Bellardinelli, coordenador da ONG Emergency na Itália.

Para ele, os mediadores culturais deveriam ser parte integrante de todo o sistema de saúde italiano. "O direito à saúde está garantido na Constituição italiana para todos que estão no território e não apenas para cidadãos, e é independente de raça ou nacionalidade também", disse.