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28 horas de terror: tomada de "STF da Colômbia" retratada em "Narcos" faz 30 anos

Uma pessoa segura uma fotografia histórica dos soldados ingressando no Palácio de Justiça com um tanque, diante do Palácio de Justiça em Bogotá, na Colômbia - Mauricio Alvarado/Colprensa/Xinhua
Uma pessoa segura uma fotografia histórica dos soldados ingressando no Palácio de Justiça com um tanque, diante do Palácio de Justiça em Bogotá, na Colômbia Imagem: Mauricio Alvarado/Colprensa/Xinhua

Natalio Cosoy

Da BBC Mundo em Bogotá

06/11/2015 07h47

Nas imagens em vídeo de arquivo, é possível ver um tanque leve entrando no imponente edifício do Ministério da Justiça da Colômbia. É uma cena estranha, quase surreal, mas que sintetiza uma tragédia marcada a ferro e fogo na consciência coletiva colombiana.

O caso, ocorrido há 30 anos, nos dias 6 e 7 de novembro de 1985, teve como principais personagens juízes, civis, um grupo guerrilheiro, o Exército, a Polícia, o governo e, suspeita-se, o narcotráfico.

As imagens do tanque no edifício foram vistas milhares e milhares de vezes na Colômbia. No resto do mundo, muitos as viram pela primeira vez na série Narcos, da Netflix, no trecho que recria o episódio e que faz referência a uma suposta colaboração entre os guerrilheiros e Pablo Escobar.

Na quarta-feira, 6 de novembro, 35 guerrilheiros do grupo M-19 tomaram o palácio de Justiça, sede da Corte Suprema e do Conselho de Estado colombiano, matando dois seguranças ao chegar ao edifício e mantendo como reféns as pessoas que se encontravam nele.

O Movimento 19 de Abril, ou M-19, nasceu em 1974, como reação ao que seus membros consideravam fraude nas eleições de 19 de abril de 1970, em que foi derrotado o candidato do movimento político ANAPO (ao qual pertenciam alguns os fundadores do M-19).

A atuação do grupo era mais urbana que a de outras guerrilhas como as Farc e a ELN. O M-19 buscava constantemente a visibilidade, especialmente com golpes espetaculares.

Em 1985, a guerrilha teria idealizado a tomada do palácio de Justiça como reação ao que considerou falhas do governo do presidente Belisario Betancur em cumprir os acordos de paz que havia assinado no ano anterior. Esse fracasso do processo abalou uma trégua firmada entre o governo e a guerrilha em agosto de 1984.

"A tomada do palácio de Justiça foi concebida como um 'golpe publicitário' desenhado para retificar a história, impugnar o presidente e seu governo e projetar-se ao poder em meio ao clamor popular que se levantaria em seguida", diz a jornalista Ana Carrigan em seu famoso livro sobre o episódio The Palace of Justice: a Colombian tragedy ("O palácio de Justiça: uma tragédia colombiana", em tradução livre).

Mas as coisas não ocorreram exatamente como o planejado.

Confronto sangrento

O edifício de quatro andares do palácio de Justiça ficava - e ainda fica, agora reconstruído - em plena área central de Bogotá, a metros do Congresso e da residência oficial do presidente.

Após a tomada do palácio pelos guerrilheiros, o presidente Betancur, que estava em meio a reuniões com embaixadores estrangeiros na sede do Executivo, recebeu a notícia de que as Forças Militares invadiram o local, no qual estavam mais de 300 pessoas, entre magistrados, funcionários, visitantes e guerrilheiros.

O historiador americano David Bushnell escreveu sobre a reação das Forças Armadas: "Aparentemente sem esperar ordens do presidente, o Exército lançou um ataque contra o edifício". Os guerrilheiros pensaram que as forças do Estado não comprometeriam a vida dos homens da lei, mas se enganaram.

No confronto morreram cerca de 100 pessoas, 12 delas magistrados, incluindo o presidente da Suprema Corte, Alfonso Reyes Echandía.

Além disso, 11 pessoas desapareceram, todos funcionários da cafeteria do prédio e visitantes. Os corpos de três delas, três mulheres, foram identificados há algumas semanas, 30 anos depois de seu rastro ter se perdido. Muitos ainda estão desaparecidos.

Foram, como disse na época a revista colombiana Semana, "28 horas de terror".

Durante o confronto entre a guerrilha e as forças de segurança, o presidente Betancur não quis - ou não lhe permitiram - negociar com o M-19. "A operação deixou a impressão - justificada ou injustificada - de que o presidente recebia ordens dos militares, em vez de dá-las", diz Bushnell.

Alguns acreditam, seguindo a linha de Bushnell, que a reação militar se transformou em uma espécie de golpe de Estado de dois dias.

Outros atribuem a responsabilidade total a Betancur, que assim que terminou o episódio, afirmou ter tido "controle absoluto da situação". Seu irmão Jaime Betancur Cuartas, magistrado do Conselho de Estados, foi um dos reféns que sobreviveu à tomada.

A Comissão da Verdade colombiana, que publicou em 2009 seu relatório sobre o caso, determinou que o governo nunca teve a intenção de salvar a vida dos reféns.

O relatório diz, inclusive, que o governo censurou informações sobre o que estava ocorrendo, ordenando a partir do Ministério das Comunicações "a transmissão de um jogo de futebol (na TV) enquanto o palácio era consumido pelas chamas".

Segundo registros audiovisuais, processos judiciais e testemunhos de pessoas que sobreviveram ao ataque, as forças de segurança assaltaram o edifício com extrema violência.

Mais de mil soldados formaram parte da equipe designada para combater os 35 guerrilheiros. A ação foi considerada "desproporcional e excessiva" por instâncias judiciais.

Além dos tanques de guerra dentro do prédio, os militares usaram armamento pesado, explosivos, franco-atiradores que disparavam constantemente contra o palácio do lado de fora e helicópteros que metralhavam a fachada.

'Narcos'

Muitos acreditam, entretanto, que a motivação do M-19 foi outra, a de prestar um serviço a chefes do narcotráfico, incinerando, nos arquivos do Ministério, o material vinculado com sua possível extradição aos Estados Unidos.

Esta é a hipótese adotada pela série da Netflix, mas ela não é comprovada, apesar de haver registros de ameaças dos narcotraficantes - liderados por Pablo Escobar - a magistrados que trabalhavam no tratado de extradição entre a Colômbia e os EUA que estava sendo elaborado na época.

A Comissão da Verdade colombiana acredita que "houve conexão do M-19 com o cartel de Medellín para o assalto ao palácio de Justiça".

Os narcotraficantes, no entanto, não eram o único grupo do qual os magistrados eram inimigos na época. Eles também investigavam oficias das Forças Militares - e chegaram a condenar alguns.

"Mais de 6 mil processos foram destruídos no incêndio do palácio da Justiça, incluindo os processos contra militares por violações de direitos humanos", diz a jornalista colombiana Constanza Vieira no epílogo do livro de Ana Carrigan.

O banheiro

Na noite do dia 6, após horas de combate, os guerrilheiros reuniram os reféns que permaneciam em seu poder, cerca de 70, em um banheiro do edifício. Ali eles passaram horas, com o medo constante de morrer ou levar um tiro. Muitos perderam a vida e outros tantos foram feridos.

Em algumas versões do episódio, os guerrilheiros teriam executado reféns, mas o consenso mais forte atualmente parece ser de que as mortes foram causadas por balas que vieram de fora do banheiro onde eles estavam reunidos em poder do grupo.

A promotora Ángela María Buitrago, que liderou a investigação da Justiça colombiana sobre os desaparecidos no episódio, acha que será difícil determinar com certeza a origem dos tiros.

"Muitas das armas e das balas utilizadas foram retiradas do local (no dia 7 de novembro). São elementos que nunca poderão ser recuperados", disse à BBC Mundo.

Sem eles, não é possível completar a perícia necessária para entender o que aconteceu em todos os casos de morte: quem os matou, se morreram dentro ou fora do banheiro.

Os que saíam do palácio eram levados a um edifício vizinho, a Casa Museo del Florero, onde as Forças Militares haviam montado sua base de operações.

Segundo diversas investigações nacionais e internacionais, este era o local em que se determinava quem era guerrilheiro, quem era suspeito, quem continuaria vivo e quem não. Nem todos os que chegaram ali saíram com vida.

Desaparecimentos e torturas

Em 2014, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Estado colombiano por casos de pessoas desaparecidas durante o ocorrido nos dias 6 e 7 de novembro de 1985.

"Existiu um modus operandi relacionado com a desaparição forçada de pessoas consideradas como suspeitas de participar na tomada do palácio de Justiça ou de colaborar com o M-19", disse a CIDH.

"Os suspeitos eram separados dos demais reféns, levados a instituições militares, em alguns casos torturados ou 'desaparecidos'."

A Justiça colombiana prendeu o ex-general Jesús Armando Arias e o ex-coronel Alfonso Plazas Vega, que comandaram a operação de retomada, pelos desaparecimentos.

A confusão entre a tomada do palácio e a resposta militar foi tanta que até hoje não está claro quantas pessoas morreram e quantas sobreviveram ao incidente.

Em sua sentença, a CIDH inclui a confirmação da tortura de quatro pessoas, que foram consideradas suspeitas de colaborar com o M-19.

A Comissão também fala sobre o desaparecimento forçado e posterior execução extrajudicial do magistrado auxiliar Carlos Horacio Urán Rojas, que muitos acreditavam ter morrido dentro do palácio.

"Esperamos por anos e decidimos acreditar no que queríamos que acreditássemos", escreveu sua filha Helena Urá Bidegaín no jornal colombiano "El Espectador".

Cerca de 22 anos depois da tomada, a família conheceu a verdade: "Meu pai não só havia saído vivo, como foi torturado e executado com um tiro na cabeça. Seus pertences foram escondidos em um batalhão, em um cofre de inteligência militar".

"Seu cadáver foi levado de volta ao palácio para que fosse queimado, mas como não puderam, eles o levaram ao Instituto de Medicina Legal e o esconderam com a intenção de fazê-lo desaparecer."

Recentemente, a Justiça colombiana chamou 14 ex-militares e ex-policiais para testemunhar na investigação das torturas.

Uma médica amiga de Urán entendeu muito antes do que sua filha o que havia acontecido.

Luz Helena Sánchez Gómez esteve no Instituto de Medicina Legal logo após os ocorrido no palácio e reconheceu o corpo, num quarto que ela diz ser chamado de "quarto dos guerrilheiros", onde médicos se encontravam com oficiais de inteligência - que se disfarçavam usando jalecos.

"Agora tenho a consciência de que o corpo de Carlos (Urán) está enterrado em algum lugar, porque o vi", disse à BBC Mundo. "Eles iam fazer algo com os corpos que estavam ali, porque a maneira como lidaram com eles não foi normal."

A CIDH disse ter constatado que as autoridades alteraram gravemente a cena do crime e "cometeram múltiplas irregularidades ao remover os cadáveres".

A versão 'mais importante'

Segundo diversos relatos, os serviços de inteligência sabiam de antemão que o M-19 planejava a tomada do palácio e, por isso, haviam reforçado a segurança.

Misteriosamente, no entanto, os seguranças já não estavam lá no dia em que a tomada ocorreu, e ainda não se sabem quem ordenou a modificação do esquema de vigilância.

Trinta anos depois, ainda há muitas versões para a história, nenhuma delas 100% confiável.

"Talvez a razão para que existam tantas versões é que cada um quer se apropriar do que aconteceu, porque dói tanto que todos nos sentimos culpados, responsáveis e vítimas", disse à BBC Mundo Marta Orrantia, que está terminando um romance sobre a prisão dos reféns no banheiro do palácio.

"Cada pessoa tem seu pedacinho de verdade, por assim dizer. Mas nem juntando todas elas podemos ter uma versão única, porque falta a mais importante, que é a dos mortos."