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Universo da série "House of Cards" se repete em Brasília, diz Gilmar Mendes

Frank (Kevin Spacey) e Claire (Robin Wright) em cena da terceira temporada de "House of Cards" - Divulgação
Frank (Kevin Spacey) e Claire (Robin Wright) em cena da terceira temporada de "House of Cards" Imagem: Divulgação

Ricardo Senra - @ricksenra

Da BBC Brasil em São Paulo

11/12/2015 16h46

A corrupção e a disputa por "poder a qualquer custo" exibidas na série norte-americana "House of Cards", do Netflix, se repetem em Brasília, afirmou o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, à "BBC Brasil".

"Estamos vivendo um momento delicado, complexo e surpreendente. Não se esperava tal estado de deterioração", afirmou o magistrado após a aula inaugural do curso de Direito do IDP (Instituto de Direito Público), em São Paulo.

Mendes, que é coordenador científico do instituto, convidou o vice-presidente Michel Temer (PMDB) para apresentar a aula magna a uma plateia lotada, composta principalmente por magistrados e personalidades da política, do Direito e do empresariado.

Na abertura do evento, ambos mostraram intimidade. O ministro classificou o peemedebista como "um dos mais sábios pensadores do país", "um mestre que nunca se afastou da academia". Temer lembrou que a amizade é antiga: "Nos conhecemos há mais de 30 anos".

Na fala de quase uma hora, o vice-presidente defendeu um modelo político que daria mais poder ao Congresso, que classificou como "quase semiparlamentarismo".

"O Legislativo passaria a participar ativamente do governo. Não teríamos os problemas que temos hoje", disse Temer, que não atendeu aos pedidos de entrevistas de jornalistas, nem comentou a polêmica carta que escreveu à presidente Dilma Rousseff, na qual reclamou ter sido tratado como um "vice decorativo".

Questionado pelos jornalistas, Mendes afirmou que Temer "certamente seria um bom presidente da República", ressaltando que não emitiria "juízos" a respeito.

Para o ministro, a decisão do STF sobre a tramitação do impeachment será rápida. "O tribunal está consciente do momento delicado pelo qual estamos passando", disse. "Não acredito que haverá pedido de vistas."

Na conversa com a "BBC Brasil", Mendes comentou ainda as acusações de que Eduardo Cunha, presidente da Câmara, estaria usando o cargo para dificultar as investigações da Operação Lava Jato contra si.

Confira os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil - Como vê o pedido de avaliação do processo de impeachment pelo STF? Por que o senhor vem recomendando cautela e distanciamento?

Gilmar Mendes - Porque este é um tema fundamentalmente político e nós não devemos fazer uma regulação exaustiva desse tema. Já tivemos um outro grave incidente, com precedente judicial, no caso Collor. E o tribunal considerou que o Congresso agiu com correção, tanto a Câmara quanto o Senado, aplicando a lei. Em princípio, não cabe substituir o Congresso.

Lamentavelmente, o Congresso não fez uma nova lei, a lei atual é de 1950 (a lei 1.079, conhecida como "Lei do Impeachment"), que já passou pela segunda Constituição e continua regulando o tema.

Temos que ter muita cautela nessa hora. A judicialização é natural, especialmente nesse momento de conflagração, mas acredito que o tribunal tem que ser severo se houver vilipêndio ao direito de defesa, ao comprometimento de lineamentos básicos do processo. O mais cabe ao Congresso.

Sobre Eduardo Cunha: parte dos magistrados nota indícios de que o presidente da Casa obstruiria investigações. Outra parte diz que isso não estaria acontecendo. De que lado o senhor está?

Isso tem que ser devidamente sopesado (avaliado). Já houve discussão de atos que constituiriam obstrução de investigação propriamente na investigação criminal. Falou-se até que o procurador-geral considerava pedir medidas de afastamento ou suspensão das atividades, mas isso não ocorreu.

Agora esse tema voltou, tendo em vista os incidentes na Comissão de Ética, que são lamentáveis, como também os incidentes na comissão especial de impeachment. Todos nós estamos vendo tudo isso chocados, conflitos corporais, físicos. Mas vem a pergunta: quem será o legitimado para fazer essa provocação ao tribunal?

Além de se investigar se de fato ele está usando as prerrogativas para se proteger, tem que se investigar quem seria o órgão legitimado para levar isso ao tribunal. Seria um órgão da Câmara, a Comissão de Ética, o procurador-geral? Aqui estamos não num processo criminal, mas num processo administrativo. O que se discute lá é a investigação parlamentar, para levar a perda do seu mandato. Isso precisa ser discutido, a questão não foi levada ao tribunal, nem na investigação dos inquéritos judiciais, nem agora. Não houve submissão, portanto vamos aguardar.

Um partido político estaria "legitimado" a levar a questão ao Supremo?

A questão é essa: quem teria legitimidade, uma vez que se cuida de procedimento parlamentar. Essa é uma questão administrativa e inusitada, não temos precedentes. Então, isso terá que ser examinado. Certamente, se chegar um pedido deste, o relator (no STF) submeterá a matéria a análise.

O senhor assiste à série "House of Cards"? Que paralelo enxerga entre a série e Brasília?

Sim. Muitos jornalistas fazem essa comparação, até identificando personagens. De certa forma, vemos isso (o que aparece na série) no mundo político, né? Talvez ali eles sejam mais realistas, mas nos romances que tratam da vida política a gente encontra esse quadro.

Estamos vivendo um momento delicado, complexo e surpreendente. Não se esperava tal estado de deterioração.

Deterioração no Executivo ou Legislativo?

No sistema político como um todo. A profundidade que a Lava Jato tem revelado é extremamente grave.

Esse contexto de deterioração traz um protagonismo ao Supremo que não se via há tempos.

A Constituição já permite esse protagonismo. O protagonismo na área penal vem desde o mensalão. O julgamento foi muito singular, com chefe da Casa Civil (o petista José Dirceu), parlamentares líderes de governo...

Agora estamos tendo essa situação que revela uma verdadeira metástase. De novo, o tribunal volta ao protagonismo pelo envolvimento de uma série de políticos.

O senhor já mostrou várias vezes simpatia às teses de afastamento da presidente. Neste domingo, protestos contra a presidente acontecerão no Brasil inteiro. O senhor já participou? Participaria deste?

Não, não, não. Eu emiti alguns juízos a propósito dos abusos cometidos e verificados na Justiça Eleitoral. Foi muito enfático: eu fui o relator das contas da presidente e depois vi a ação de impugnação do mandato porque a relatora dizia que não via fundamentos. Eu fui enfático: aquilo tinha que ser investigado. Se afinal ela vai ser absolvida ou condenada na Justiça Eleitoral é outra questão.

O que achei é que era fundamental que o tribunal abrisse o processo para que as provas viessem. Tendo em vista todos os fatos colocados, por exemplo a possibilidade de ter usado doações de campanha advindas de propina da Petrobras. Isso precisava no mínimo ser investigado.

Qual foi o último protesto ou manifestação que participou?

Ah, isso já faz muito tempo. Alguma coisa na universidade, à época Brasília era muito agitada, estou falando dos anos 1970, o enterro de Juscelino Kubitschek, ia muito a manifestações no Congresso Nacional. Depois assumi funções públicas.

As funções públicas inibem esse tipo de atuação política nas ruas?

Tem que ter uma contenção, né? São funções públicas de relevo.

As diferenças entre os ministros do Supremo - alguns mais simpáticos ao impeachment, outros menos, alguns simpáticos ao afastamento de Cunha, outros menos - dificultam a atuação do tribunal?

Acho que não. O tribunal vai conseguir uma unidade, ou pelo menos um consenso básico em todas as matérias. Acho que todos são pessoas com muita experiência na vida pública, na vida política, e saberão dimensionar as decisões e suas consequências no momento histórico que estamos vivendo.