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Tim Vickery: Onde foi parar a audácia que criou, no Rio, um de meus lugares preferidos?

Tim Vickery*

08/01/2016 13h29

Estou mudando de casa. Uma chatice monumental. Não tenho paciência com a burocracia (tem coisa mais retardada do que reconhecer firma?), e o estresse fica pior ainda quando se trata de um deslocamento de um lugar que serve como escritório, além de moradia.

Não preciso nem quero mudar. Adoro onde estou. E só descer para rua para gozar da plenitude da vida urbana – bares, restaurantes, supermercado, metrô, cafés, cinema.
 
Mas fui voto vencido pela mulherada (tenho duas enteadas adultas) e o mantra feminino de "queremos mais espaço". Portanto, às caixas!
 
Não estamos indo para longe. Na verdade, o novo apartamento fica a mais ou menos cinco minutos a pé do atual. Não está cercado por tanta muvuca, mas tenho de confessar que o novo desfruta de uma vantagem considerável – fica mais perto ainda de Aterro do Flamengo.
 
Para aqueles que não conhecem o Aterro, os meus pêsames. É um dos meus lugares preferidos do mundo, mistura de parque e praia, uma obra mestre enquadrada pelo Pão de Açúcar no lado direito e pelo aeroporto Santos Dumont no esquerdo – um contraste entre natureza e tecnologia que é totalmente adequado.
 
Porque o Aterro é exatamente isso – um espaço que era mar e que o homem (no sentido geral, pois uma das grandes responsáveis foi uma mulher, Lota de Macedo Soares) transformou em terra.
 
Vou para lá quase todos os dias, e, apesar de um defeito aqui ou ali, o Aterro sempre eleva o meu espírito - por três motivos.
 
Primeiro, simplesmente porque se trata de um espaço bem aproveitado. Qualquer domingo ensolarado de verão tem churrascos, jogos de futebol, crianças soltando pipa, uma bateria se preparando para o Carnaval. Tem um lugar para praticar skate e até uma pista de aeromodelismo.
 
Segundo, porque serve como uma lição do potencial da harmonia entre a humanidade e a natureza. Sempre tenho que me beliscar para lembrar que esse espaço não é um presente da Mãe Natureza – ele foi pensado, planejado, trabalhado, inclusive pelo pai da minha mulher, um pedreiro de obra.
 
E terceiro porque o Aterro faz lembrar de uma época, nas palavras de um urbanista local, em que Brasil era moderno. Apesar do inegável progresso que o país tem feito nos últimos anos, talvez faltem visões e projetos tão audaciosos.
 
Mas eles já existiram. O Parque do Flamengo serve como prova de que a mediocridade não é inevitável nem eterna.
 
Hoje, depois de semanas chiando, finalmente consegui me conformar com a mudança de casa. No final da tarde, fui levar algumas roupas para o novo apartamento.
 
A grande janela tem uma vista maravilhosa da Baía de Guanabara e, exatamente naquele momento, como um cartão postal com o sol começando a se pôr, um grande navio cruzeiro a estava atravessando, saindo do Rio e dando sequência à sua viagem. Com as luzes já acesas, parecia um enorme bolo de casamento flutuante. Quem não queria morar tendo cenas assim como pano do fundo?
 
Era magia pura, que só se desfez quando lembrei que o cruzeiro estava navegando em águas podres – mas isso é assunto para outro dia.
 
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick