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Índio de região afetada por lama em Mariana hoje vive em praça em Ipanema

BBC Brasil
Imagem: BBC Brasil

Ricardo Senra

Em São Paulo

18/01/2016 16h49

Um índio da tribo krenak, cujos membros vivem principalmente entre os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, dorme há um mês ao relento numa praça movimentada de Ipanema, no Rio de Janeiro. Ele explica o motivo: "lama, moço".

Sentado sob uma árvore, em frente à estação General Osório do metrô, Gerson Marlon conta que trabalhava como "meeiro" numa fazenda da região da barragem de resíduos de mineração de Fundão --que rompeu em novembro e espalhou uma mancha química que cobriu rios, fazendas, vilarejos e já alcança a região do arquipélago de Abrolhos, na Bahia.

A relação de trabalho de meeiros como Marlon é precária e geralmente não inclui qualquer vínculo formal de trabalho. Eles geralmente assumem o trabalho braçal em terras pertencentes a fazendeiros e repartem com os donos da terra o resultado da produção --daí o termo, vindo do verbo informal "meiar" (dividir).

"Fui buscar uma vaca que estava faltando no fim da tarde, no dia 5 (de novembro). Toquei o berrante umas oito vezes e pensei: 'não vou tocar mais pra ela deixar de ser besta'. A vaca não apareceu e eu tive que procurar. Quando cheguei no alto do morro, tudo estava diferente. Onde tinha pasto, casa e plantação, era lama e gente gritando. A vaca estava morta. Morta embaixo do minério."

krenak ipanema - BBC Brasil - BBC Brasil
Imagem: BBC Brasil


"O fazendeiro perdeu fazenda e eu perdi trabalho", prossegue o índio, de 44 anos, que vive longe da reserva Krenak desde as mortes da mãe (picada por um barbeiro, transmissor da doença de Chagas) e do pai ("bebia muito e morreu de tristeza sem ela").

"Não consegui ficar lá depois da lama. Eu via alguém dentro de mim falando: 'segue essa estrada, segue esse caminho'. Eu não tinha mais nada. Trabalho, comida, família, rio, nada. Aí fui."

Em novembro passado, poucos dias depois da ruptura da barragem construída pela mineradora Samarco, controlada por Vale e BHP, a reportagem da BBC Brasil visitou a principal aldeia Krenak, no município de Resplendor, quase fronteira entre Minas Gerais e Espírito Santo.

Na época, os índios haviam interrompido, em protesto, a estrada de ferro da Vale que corta a reserva - "nosso rio morreu", diziam, sem água para cozinhar, pescar ou tomar banho (leia a reportagem completa aqui).

Trabalho

Como tantas outras, a história de Marlon ganhou visibilidade pelo Facebook. À BBC Brasil, a advogada Clara Annarumma, que fez uma postagem sobre seu encontro com o índio, conta que passa sempre pela praça após corridas matinais.

"Eu tinha umas moedas no bolso, quase nada, acho que 75 centavos, o troco de uma água que tinha bebido. Sabia que era muito pouco, mas ofereci:' toma aí'. Ele agradeceu e me perguntou se eu sabia de algum trabalho. Aí eu prestei mais atenção, né, porque geralmente as pessoas querem dinheiro mole. Continuamos conversando e ele me contou que morava perto de Mariana."

Ainda surpresa, a advogada conta que sua publicação ganhou mais de 600 compartilhamentos em quatro dias. "Eu já tinha visto gente compartilhando fotos de pessoas no Facebook e conseguindo muita oferta de ajuda. Aí fiz isso: no dia seguinte, fui correr com o celular, pedi para tirar uma foto, pedi o telefone dele. Ele disse que tinha um telefone, mas não conseguia carregar. Então levei o celular dele para casa, carreguei e avisei que soltaria o post."

Annarumma conta que já recebeu alguns convites de trabalho para Marlon em seu próprio perfil do Facebook. "Espero conseguir ajudar de algum jeito. Ele me autorizou a colocar o telefone. Quem não consegue falar com ele pode mandar mensagens para mim mesmo. O importante é que role."

Fome

À reportagem, Marlon conta que passou uma semana caminhando pelo mato, sempre às margens de rodovias, até chegar ao Rio de Janeiro. "Estrada de chão não tem bicho. No mato tem e eu sei caçar jacutinga, cascavel, quati. Eu andava, comia bicho, bebia água de rio e dormia."

A BBC Brasil também conversou com um segurança da região. "Ele fez amizade com todo mundo, com o dono da banca de jornal, o pessoal das lojas... É boa gente, é confiável, e tomara que consiga algo", disse, antes de fotografar Marlon para a reportagem.

Marlon causou surpresa na região ao ser visto dormindo no alto de uma árvore durante os primeiros dias. "Me disseram que não pode dormir em cima, tem que dormir embaixo. Eles não querem me ver machucado, são bons comigo. Mas é costume na roça. É cultura minha e do meu povo krenak."

Para Joceli Andrioli, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que defende os direitos de grupos afetados por grandes obras, a história contada por Marlon é "coerente" com o que tem sido visto na região de Mariana.

"Em locais como Barra Longa, vários trabalhadores rurais perderam emprego assim porque as fazendas estão inviabilizadas. Essas pessoas não têm ideia de que são atingidos da mesma maneira que as outras, e têm direito a reparação. No caso dos meeiros, o próprio fazendeiro fica com medo de que a responsabilidade caia sobre ele, por conta da relação informal de trabalho, e incentiva a saída. Sei de gente que foi embora e voltou para onde vivem suas famílias."

"A gente passa fome, né?", diz o índio krenak, que vende réplicas de aviões com latas de alumínio para sobreviver na capital carioca. "Agora eu estou com uma dor de dente, peguei muita chuva, a gente deita no molhado e fica doente."

Ele conta que aprendeu a fazer réplicas de caças e jatos em sua terra natal, com outros índios. "Aí cheguei aqui e fiquei na praia do Flamengo vendo os aviões voarem do aeroporto", diz. Com ajuda do dono da banca de jornal vizinha (ele fornece de graça revistas sobre aviação ao novo companheiro de praça), Marlon adaptou o trabalho e agora também faz réplicas de aviões comerciais.

"Eu conversava com os peixes, com os bichos, tinha cobra que vinha comer na minha mão. Aqui é diferente. Não tem as coisas no caminho, tem que comprar. Eu não gosto de pedir e amo a minha arte, ninguém no mundo faz avião igual. Eu vendo por pouco, por '20 cruzeiros, '30 cruzeiros', depende da possibilidade da pessoa. Quero viver disso, quero dar certo aqui."