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A história de amor que sobreviveu à distância, à prisão, à tortura e à guerra

Ahmed e Razan enfrentaram guerra e distância para ficar juntos - Arquivo pessoal
Ahmed e Razan enfrentaram guerra e distância para ficar juntos Imagem: Arquivo pessoal

Emily Webb e Matthew Bannister

28/02/2016 06h04

Na primeira vez que Ahmed Alhameed pediu Razan Alakraa em casamento, ela disse não.

Alguns anos depois, uma nova tentativa deu mais certo --mas isso não significou um final feliz imediato. Eles tiveram que enfrentar a distância, a guerra e a tortura para ficar juntos.

Ahmed morava na Síria e Razan, também de origens sírias, nasceu na Inglaterra. As famílias tinham amigos em comum e, ao ouvir falar de Razan pela primeira vez, Ahmed achou que ela "o completaria".

"Eu estava preocupado com a possibilidade de ela dizer não, como qualquer outro cara ficaria. Mas estava otimista", conta ele à BBC.

"Pensei: de jeito nenhum", diz ela. "Ele era da Síria, achei que a cabeça seria totalmente diferente. A verdade é que fui muito crítica", conta ela.

Mas isso tudo aconteceu antes do início do conflito na Síria, em 2011.

Com a guerra civil, ele, que é médico, começou a trabalhar clandestinamente em um hospital de campanha em Homs, sua cidade natal. O trabalho era perigoso e ele precisava mantê-lo sob sigilo para que o governo não o perseguisse.

Na Inglaterra, Razan diz que vivia uma vida dupla. No início, quase ninguém sabia o que estava ocorrendo na Síria, e ela temia que, se eles contassem, o governo se voltasse contra sua família.

"Vi guerra toda a minha vida com meus amigos, mas nunca esperei que fosse acontecer com minha família. Eu vivia quase uma vida dupla, porque ia para a universidade e sorria e aí chegava em casa e ficava chorando com minha família."

Guerra

Mas, mesmo de longe, ela acabou se envolvendo no conflito. Por falar inglês, organizou diversos grupos para colocar em contato, via Skype, jornalistas britânicos, como os da BBC, e ativistas de direitos humanos com fontes na Síria.

E foi aí que o caminho dos dois voltou a se cruzar: um dia, ela precisou de informações sobre o hospital, e eles se falaram novamente.

Ahmed pediu Razan em casamento outra vez em dezembro de 2012.

"Acho que minha mentalidade mudou depois de 2009. Ia à Síria todo ano, mas depois de trabalhar com eles em um dos períodos mais importantes e difíceis da minha vida, percebi que podia estar no lugar deles, e eles poderiam ser cidadãos britânicos, então não era justo eu julgar alguém baseado no lugar em que eles haviam nascido", diz ela.

Razan conta também que sua admiração por Ahmed havia crescido: "Ele estava arriscando sua vida, havia perdido o pai e a irmã há pouco tempo mas ainda se dedicava a trabalhar no hospital, a ajudar as pessoas. Eu respeitava ele muito mais e queria conhecê-lo."

Marcaram de se encontrar no Líbano, mas não foi o encontro dos sonhos: vindo de uma zona de guerra, Ahmed estava estressado, cansado e com raiva, e Razan pensou que não conseguiria ficar com ele.

"Sentei com ele para dizer não, e ele falou: 'Você entende que eu enterrei mais de mil pessoas nesse ano, que eu atendi pessoas sem energia elétrica, tive que usar celulares para ter luz?", conta ela.

"Eu sabia que estava estressado, mas quando olhei para ela, quando vi sua linguagem corporal, o jeito que ela mexia as mãos... Quando vi isso eu soube que ela era a pessoa com quem eu queria estar, a pessoa com quem eu queria morar. E meu coração batia forte, eu vi meu futuro com ela, me vi tendo filhos com ela."

Os dois acabaram tomando uma decisão intermediária: "Eu aceitei ficar noiva dele, o que é diferente de casar!", brinca Razan.

Prisão

Marcaram de se encontrar novamente em dois meses --ou seja, abril de 2013-- para oficializar o noivado, mas o tio e o primo de Razan foram torturados e mortos na Síria no meio tempo, o que deixou a família em luto e a fez adiar o noivado.

Remarcaram para dezembro, mas em novembro foi a vez de Ahmed ser preso.

Ele conta que ficou detido em dois lugares diferentes, submetido a tortura física e psicológica. Segundo ele, os agentes colocavam ingredientes que provocavam diarreia na comida dos presos e só davam 8 segundos, duas vezes ao dia, para que usassem o banheiro. Ahmed foi preso com 112 quilos e saiu da prisão com 70.

"Mas a tortura mental é mais forte que a tortura física. Fui torturado fisicamente com eletricidade, chicoteado com fios de metal muito fortes. Mas a tortura mental foi muito grave. Eles nos davam sentenças falsas. Eles diziam que eu tinha sido condenado à morte por enforcamento, mas quando tiveram a cadeira debaixo de mim, me seguravam para eu não morrer."

Durante o primeiro mês, ninguém tinha notícias de Ahmed. "A única coisa que eu sabia sobre detenção era meu tio e meu primo sendo devolvidos como um corpo torturado. (...) Rezei para que ele tivesse morrido logo para que não torturassem ele por muito tempo."

'Milagre'

Ahmed foi solto após o que ele descreve como "um milagre". Seis meses após ser preso, ele foi levado a julgamento por 11 acusações.

Entrou no tribunal acorrentado a outros 14 presos e assim ficou até que uma das mulheres presas passou mal. O coração dela parou de bater, e Ahmed disse ao juiz que era médico e pediu para ajudar. Ahmed fez uma massagem cardíaca e o coração dela voltou a bater.

"Lembro que o juiz olhou para mim com os olhos cheios d'água e senti que ele estava realmente entendendo minha dor. Ele me chamou de 'doutor' - foi a primeira vez que alguém me chamou de doutor em seis meses. E então ele foi prosseguiu com cada acusação, uma por uma, e no final eu fui absolvido de todas elas", conta.

Na primeira foto que Razan viu de Ahmed após a prisão, ela nem sequer o reconheceu. Os dois se reencontraram pela primeira vez em abril de 2014. Segundo ela, ele estava melhor fisicamente, mas muito mexido. "Eu pensava: este não é ele. Tenho que fazer o possível para ajudá-lo."

Os dois se casaram em maio de 2015, porque essa era a única forma de tirar Ahmed da Síria. Ficaram nervosos até o momento em que o avião de Ahmed decolou para a Inglaterra, no Reveillon de 2015. O reencontro no aeroporto foi emocionante.

"Meus pais abraçaram ele antes de mim! Ver ele finalmente ali, chegando de avião e não atravessando o mar, como outros sírios, foi indescritível", diz ela.

"Quando estava preso, o tempo passava muito devagar. Às vezes achava que tinha parado. Quando casamos, a vida virou outra. O tempo começou a passar rápido. O jeito que olho para a vida é diferente. O gosto das coisas é outro, o gosto do café é diferente", diz Ahmed.

"No aeroporto, tive um flashback de tudo que tinha acontecido na minha vida nos últimos cinco anos, o que me levara até ali. Não acreditava que estava seguro, longe de toda a matança, todo o bombardeio, com a pessoa que amava e num lugar em que via um futuro."