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O impeachment e o muro que separa não 'coxinhas e petralhas', mas povo e peemedebismo

Reprodução/Twitter
Imagem: Reprodução/Twitter

Ricardo Calazans

21/04/2016 13h26

Uma foto circulou bem nas redes no último fim de semana. A imagem flagra um casal que se beija na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, sobre o infame muro erguido para dividir "coxinhas" e "petralhas" nos protestos pró e contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Ele, de vermelho; ela, de amarelo.

Ainda no fim de semana, a emissora GloboNews exibiu, numa curta reportagem, uma série de frases coladas e pichadas no muro. Uma delas dizia: “Bora se amar". Também mostrou que alguém decidiu instalar um daqueles telefones de copo e barbante entre os dois lados. A brincadeira deu certo, e alguns manifestantes trocaram argumentos bem razoáveis, apesar (e além) do muro.

A foto, a reportagem e as seis horas em que travamos contato direto pela TV com os homens e as mulheres que nos representam no Legislativo, no último domingo, deixaram algo bem claro. Existe sim um muro no país, mas ele não separa quem apoia Dilma e quem quer vê-la longe do Palácio do Planalto.

Este muro, tão simbólico quanto (sur)real, está erguido há tempos entre a classe política e a população.

E o muro tem nome: peemedebismo. O conceito do filósofo Marcos Nobre, professor da Unicamp, define um sistema político fechado em si mesmo, que existe para filtrar e barrar as pressões populares e cuja principal função é simplesmente perpetuar-se no poder.

Daí as esdrúxulas justificativas de voto a favor do impeachment e a coleção de palavras-chave, reveladoras da atuação do Congresso, acompanhadas de pronomes possessivos que nada têm a ver com a prática republicana: "Minha mãe", "meu neto", "meu Estado", "minha cidade", "meus eleitores".

Os discursos descabidos foram ironizados até pela conservadora revista The Economist. Talvez por tratarem a coisa pública como propriedade privada.

A classe política custa a ouvir os recados das ruas, e, quando escuta, finge que não entende. Em junho de 2013, o país foi chacoalhado por um inesperado movimento civil, tão difuso quanto contagiante, iniciado após mais um aumento nas passagens de ônibus, e que atordoou inteiramente a Praça dos Três Poderes.

Bandeiras de partidos foram rejeitadas amplamente, numa mostra de insatisfação com o sistema político, enquanto crescia o chamado nas redes sociais: “Vem pra rua”.

Na época, os manifestantes tentaram explicar que não era “pelos 20 centavos” das passagens que eles decidiram encarar a truculência policial. Era uma questão de princípios. Uma crítica tanto ao governo do PT, já então abalado pelo escândalo do mensalão, como às bancadas legislativas que perpetuam o “toma lá, dá cá” sem pudores, governando mais para os patrocinadores de suas campanhas do que para seus eleitores.

Em 2013, os protestos foram capitalizados mais pela esquerda, assim como os que surgiram no país após a operação Lava Jato foram absorvidos em boa parte pela direita. Mas, para além dos discursos inflamados e retos dos mais radicais, as pautas dos protestos têm muito em comum. Exigir a redução do preço das passagens, no fim das contas, é não querer “pagar o pato”.

No centro de todas as discussões enfurecidas que varreram o país na crescente polarização dos últimos dois anos estão princípios que se mantêm firmes, imunes aos radicalismos despudorados: ética na política, equilíbrio na economia, transparência na relação com o público, representatividade efetiva dos temas de interesse comum nos governos que elegemos democraticamente.

Esses princípios não são de esquerda nem direita: são republicanos. E em cima deles deveria ter sido decidido o impeachment de Dilma no domingo.

Cinquenta e oito por cento dos deputados federais têm alguma ocorrência judicial. O relator do processo de impeachment, Jovair Arantes (PTB-GO), foi condenado na terça por crime eleitoral. O prefeito de Montes Claros (MG), citado por sua mulher, a deputada Raquel Muniz (PSD-MG) em seu voto pelo “sim” para "dizer que o Brasil tem jeito”, foi preso na segunda-feira pela Polícia Federal, acusado de sucatear a rede municipal de saúde para beneficiar um hospital privado.

Ver tanta gente comprometida dessa forma (há 76 condenados pela Justiça na Câmara) na TV, bradando de forma histriônica “pelo fim da corrupção”, capitaneados por um parlamentar que é réu no Supremo Tribunal Federal, fez muita gente rever as próprias convicções e, em muito tempo, reparar em quem está do outro lado.

Foi o que o Financial Times chamou de “reação incerta” dos brasileiros à sessão de domingo. Essa mudança foi sentida também pela consultoria Eurasia Group, que tenta explicar para seus clientes a crise brasileira. Se conseguirem, podem explicar pra gente.

Mas há algo que cabe a todos nós entender: é no diálogo, e não na ruptura, que está a verdadeira força de mudança. “Você me abre seus braços / E a gente faz um país” **.

*Ricardo Calazans, autor deste artigo de opinião, é jornalista e colaborador da BBC