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Respostas "duras" de Serra a críticas de países vizinhos dividem Itamaraty

O ministro José Serra conversa com o presidente interino Michel Temer - AFP
O ministro José Serra conversa com o presidente interino Michel Temer Imagem: AFP

Ricardo Senra - @ricksenra

Enviado especial da BBC Brasil a Brasília

16/05/2016 16h10

A troca de poder na Presidência da República reverbera também em embaixadas, consulados e corredores do Itamaraty. Parte do corpo diplomático reagiu mal aos primeiros passos da gestão do novo chanceler José Serra, nomeado na última quinta-feira (12) pelo presidente interino Michel Temer.

O grupo insatisfeito classifica as primeiras notas, divulgadas na sexta-feira pelo gabinete do novo ministro, como "eleitoreiras" e "agressivas", fugindo ao tom tradicional da instituição.
 
Os destinatários dos comunicados oficiais eram países como Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua – todos críticos à legitimidade do processo de impeachment de Dilma Rousseff. Nas notas, a gestão de Serra responde ao posicionamento dos vizinhos com termos como "falsidades", "preconceitos" e "absurdo".
 
Nesta segunda, foi a vez de uma resposta a El Salvador, que criticou o impeachment e decidiu suspender os contatos oficiais com o Brasil. Em nota, o Itamaraty diz que a medida do país caribenho revela "profundo desconhecimento" sobre a legislação brasileira.
 
Para os críticos, o posicionamento de Serra colocaria acordos comerciais em risco (só com a Venezuela, o Brasil teve superavit comercial de R$ 38 bilhões entre 2004 e 2015) e atrapalharia a reputação diplomática do país. Eles também sugerem que os comentários enfáticos teriam “fins eleitoreiros”, de olho em uma possível candidatura do ministro à Presidência da República em 2018.
 
De outro lado, alas do Ministério das Relações Exteriores entendem como "natural e necessária" a ofensiva do tucano a governos historicamente aliados da gestão petista. Para esses diplomatas, Serra e Temer precisam responder enfaticamente a questionamentos sobre a legitimidade do governo interino para que ele possa ganhar relevância na comunidade internacional.
 
Uma terceira via sugere ainda que o novo chanceler estaria antecipando um diálogo com possíveis sucessores de Nicolás Maduro (Venezuela) e Rafael Correa (Equador) caso se confirme uma guinada à direita em todo o continente nas eleições presidenciais em curso.
 

Disputa de 2018

 
A reportagem ouviu membros de diversos níveis da instituição: de oficiais de chancelaria a embaixadores, passando por diplomatas. Todos pediram anonimato – por medo de represálias ou por temer dar declarações públicas "prematuras" sobre as mudanças no Itamaraty no governo interino.
 
Segundo a BBC Brasil apurou, Serra esteve duas vezes no Palácio do Itamaraty desde a nomeação. Na sexta-feira, saiu do edifício às 23h. No dia seguinte, conversou com líderes de sua nova equipe das 12h às 14h, já construindo seu discurso de posse.
 
Ele se apresentará oficialmente na próxima quarta-feira, quando falará pela primeira vez à frente do ministério.
 
"Nosso receio é que o Itamaraty seja usado como plataforma para avanço em interesses de curto prazo da política interna, em vez de perseguir objetivos de longo prazo do Estado brasileiro", avaliou um diplomata à BBC Brasil.
 
Ele se refere a uma possível candidatura do tucano à Presidência da República em 2018. Com as críticas públicas a lideranças de esquerda do continente, Serra estaria satisfazendo parte de seu eleitorado, que protesta nas ruas e redes contra o que entende como "eixo bolivariano" na América Latina.
 
Uma figura importante do Itamaraty minimiza os efeitos da suposta estratégia. “Serra foi um bom ministro da Saúde e nem por isso conseguiu se catapultar à Presidência da República.”
 
“Ele se mostra como ministro candidato”, rebate outro. “(Suas declarações) jogam para uma plateia treinada a odiar cegamente a Alba e a Unasul (órgãos multilaterais formados durante a predominância de governos de esquerda no continente).”
 
Na avaliação do professor Oliver Stuenkel, professor da FGV de São Paulo e especialista em relações internacionais, esse tipo de estratégia, se existir, é algo esperado. “A política externa sempre é feita com objetivos internos.”
 
“Acho que ele tem boa perspectiva para 2018 porque a política externa é uma fonte de boas notícias”, afirma. “Em um momento de cortes e ajuste, o ministro da Saúde dará notícias ruins, o mesmo para o da Fazenda ou do Planejamento. Sem avaliar aqui a orientação ideológica de Serra, ele usará sim o Itamaraty para produzir noticias positivas, com acordos binacionais, assinaturas de tratados, soluções de problemas de fronteira etc.”
 
Stuenkel ressalta que a prática foi realizada em gestões anteriores. “Lula começou a promover o rótulo de potência emergente ao Brasil no justo momento em que o mensalão começou a surgir internamente. Foi uma tentativa bem-sucedida de usar a política externa para a produção de boas notícias.”

Teor das notas

Em 2010, quando concorreu com Dilma Rousseff nas eleições presidenciais, o tucano disse que o governo boliviano é “cúmplice do tráfico” de cocaína e que “não teme incidentes diplomáticos” com o país vizinho.
 
“A melhor coisa diplomática para o governo da Bolívia é passar a combater ativamente a entrada da cocaína no Brasil", afirmou na época, em referência ao presidente Evo Morales, importante aliado das gestões Lula e Dilma no continente.
 
Mais recentemente, Serra fez críticas ao programa Mais Médicos, que traz médicos estrangeiros, na maioria cubanos, para atuar como médicos de família em regiões com pouca oferta no país.
 
"Afastar-se de países como Cuba, por exemplo, por motivações ideológicas, em um momento em que até os Estados Unidos estão se reaproximando, é ir na contramão da história", avalia um dos críticos.
 
Ele se refere à nota divulgada no último dia 13, logo após o anúncio da posse de Serra, em que o ministério “rejeita enfaticamente as manifestações dos governos da Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, assim como da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América/Tratado de Comércio dos Povos (ALBA/TCP), que se permitem opinar e propagar falsidades sobre o processo político interno no Brasil”.
 
O texto oficial prossegue: “Esse processo se desenvolve em quadro de absoluto respeito às instituições democráticas e à Constituição Federal".
 
Em outra nota, respondendo ao secretário-geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), Ernesto Samper, que sugeriu uma ruptura do sistema democrático brasileiro caso o impeachment se confirme, o ministério afirmou que "os argumentos, além de errôneos, deixam transparecer juízos de valor infundados e preconceitos contra o Estado brasileiro (...) e fazem interpretações falsas sobre a Constituição e as leis".
 
O tom surpreendeu alguns diplomatas. "A linguagem usada nas duas notas não soa a notas diplomáticas brasileiras. Isso vale mesmo na comparação com o tom usado na política externa do presidente Fernando Henrique", avaliou um dos críticos.
 
"Leva-se anos construindo a imagem de garantia da estabilidade sul-americana e, em um ato apenas, se coloca tudo a perder."
 
À BBC Brasil, o embaixador Frederico Meyer, porta-voz do Itamaraty, disse que "a nova administração está começando e não há nenhuma mudança de instrução e orientação".
 
Sobre as críticas internas às notas, Meyer afirmou que elas não são suficientes para se avaliar a postura do ministério.
 
"É muito cedo para julgar ou avaliar", afirmou. "São comentários anônimos, eles existem em qualquer instituição. Há pessoas que agradam e que desagradam."
 

'Sempre haverá críticas'

Na avaliação do professor Matias Spektor, coordenador do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, "nenhum chanceler poderoso gera unanimidade dentro do Itamaraty.
 
“Sempre haverá críticas. Foi assim com Celso Amorim, será assim com Serra", afirma.
 
Ele classifica as notas emitidas pela nova gestão como um posicionamento “como ministro forte de um governo no qual disputa espaço com a equipe econômica".
 
Para o professor Oliver Stuenkel, as cartas aos dirigentes de países vizinhos devem ter pouca influência nos rumos diplomáticos do continente.
 
“A Venezuela hoje não apoiaria o governo Temer independentemente da nota. A Bolívia idem, isso já está dado”, afirma. “Mesmo sem essas notas, eles não dariam nenhum apoio diplomático ao Brasil.”
 
Stuenkel ressalta que as previsões de resultados para eleições presidenciais no Peru e no Equador mostram fortalecimento de candidatos de centro-direita. “Sem juízo de valor, a tendência mostra um isolamento crescente da Venezuela. O risco dessas notas não é tão grande”, avalia.
 
Parte dos diplomatas discorda e vê riscos em um possível afastamento.
 
“É importante esclarecer que a proximidade com os países vizinhos não é uma diretriz do governo, mas uma prática de Estado iniciada há mais de 100 anos, com o próprio Barão do Rio Branco”, diz uma das entrevistadas. Ela teve altos e baixos, mas foi consagrada pela própria Constituição (artigo 4º, parágrafo único).”