Topo

Ponto de vista: 'Revolta contra estupro coletivo ainda fecha os olhos para violência sexual mais comum no Brasil'

Nana Queiroz é diretora executiva da Revista AzMina - BBC
Nana Queiroz é diretora executiva da Revista AzMina Imagem: BBC

Nana Queiroz*

Especial para a BBC Brasil

27/05/2016 12h08

Eu trabalho com violência contra a mulher e histórias de estupro fazem parte do meu dia a dia. Mesmo assim, a atrocidade cometida contra uma jovem carioca de 16 anos, segundo relatos abusada por nada menos que 33 homens, me deixou incrédula. Desconfiei das primeiras postagens sobre o caso e, em alguns momentos, estive convencida de que eram boatos criados por alguma mente mórbida e desocupada.

Como a maioria dos brasileiros e brasileiras, eu sinto repulsa e revolta de que o relato seja real. Mas eu também tenho medo de que transformar este caso em um emblema seja contraproducente para a luta contra o estupro no Brasil.

Sabe por quê? Porque qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade vai ser contra uma atrocidade dessas. O caso é tão vil que deixa a maioria dos homens confortável para se olhar no espelho e dizer: "Poxa, cara, você é dez! Você não é estuprador, nunca faria uma coisa dessas!" Mas se tantos caras têm dito isso a si mesmos nos últimos dois dias, como é que se explica que a cada 11 minutos uma pessoa - na maioria absoluta dos casos, uma mulher - seja estuprada no Brasil?

A verdade é que nós não deveríamos encontrar esse tipo de conforto. Em nosso país, o estupro quase nunca se dá com 30 homens, uma moça desacordada e requintes de crueldade. O estupro acontece como foi o meu e o de tantas amigas minhas: em situações consideradas "normais" ou "justificáveis". Ele acontece porque nós, enquanto sociedade, vivemos repetindo que "ah, mas ela sabia o que poderia acontecer se bebesse tanto" ou "mas, afinal, ela provocou com aquela minissaia" ou ainda "ué, mas ela não gostava tanto de transar? Deu espaço pra essa interpretação!".

É esse o estupro que a gente não quer olhar nos olhos. É o estupro que pessoas que a gente conhece - ou nós mesmos - poderíamos cometer, se é que já não cometemos. É o estupro que é socialmente justificado e não é execrado pela opinião pública.

A moça que vivenciou essa violência sem tamanho merece todo nosso carinho e apoio. Mas eu também quero ver a gente se escandalizar contra os universitários que se debruçam sobre meninas de consciência alterada pelo álcool ou pelas drogas, o homem que força a barra quando a namorada diz "vamos parar por aqui" ou os adolescentes que convencem as priminhas mais novas, ainda crianças, de que sexo é apenas mais um tipo de brincadeira.

Enquanto promovia o protesto online "Eu não mereço ser estuprada", em 2014, recebi uma série de depoimentos de mulheres, homens e adolescentes que foram vítimas de abuso sexual. Todos comprovavam as estatísticas. No Distrito Federal, onde vivia à época, uma pesquisa indicou que 85,2% dos estupros acontecem dentro da casa da vítima ou do agressor. Isso significa que a maioria das pessoas é estuprada por alguém que conhece. E não posso jamais esquecer que a pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que mobilizou a manifestação nos revelou que nada menos que um em cada quatro brasileiros acredita que mulheres que mostram muito o corpo merecem ser atacadas. Merecem.

Quando eu, aos 27 anos, resolvi falar pela primeira vez a meu pai sobre o abuso sexual que havia sofrido na infância e ele, bom pai que é, resolveu encarar o abusador (que é da minha família), ouvi de alguns parentes que eu estava ressuscitando assuntos de mil-novecentos-e-bolinha para destruir a minha família e que, se amava nossa união, deveria ficar calada e que: "Ah, mas isso era apenas brincadeira de crianças, você está exagerando". Como se ameaçar uma menina de 5 anos a tirar a roupa e deixar que você deite sobre o corpo dela para não ser mordida por um doberman agressivo fosse um entretenimento perfeitamente saudável.

Escrevo este artigo esperando os comentários assustadores de que "peraí, quem te abusou era menor de idade? Ah! Mas isso não é estupro, né, é curiosidade de menino, homem é assim mesmo". E será que é este "assim mesmo" que nós queremos para nossos homens? Ou seja, estupro coletivo não pode, mas se valer da confiança de uma menina ingênua e amedrontada da sua família, ah, isso é tudo bem. E se a mulher foi até sua casa, aí é tudo bem também. Se bebeu demais, idem. Se não era "moça de família", poxa, mas então ela tava pedindo, deve ter até gostado.

Me lembro sempre da história da Maria*, uma mulher de mais de 40 anos que me escreveu à época da minha campanha contra o estupro pra contar essa história: aos 14 anos, Maria saiu do banho como sempre fez por toda a vida, enrolada na toalha. O avô a puxou pelo braço e a estuprou. Pense que depois desse trauma horrível, a pequena Maria teve a coragem hercúlea de contar o ocorrido à avó. Sabe o que a mulher disse? Que a culpa era dela por tê-lo provocado "desfilando o corpo seminu pela casa". Maria acreditou na avó. Acreditou até a campanha que fizemos e me escreveu para agradecer a libertação que era, finalmente e depois de tantos anos, reconhecer-se como vítima.

Eu queria que você, leitora e leitor, se indignasse contra o meu abuso e o estupro de Maria. Eu queria que você nos olhasse nos olhos porque nós somos o rosto do estupro no Brasil. Nós somos o estupro que você ajudou a justificar.

*Nana Queiroz é diretora executiva da Revista AzMina (Facebook.com/revistaazmina), autora do livro "Presos Que Menstruam" e roteirista da série de mesmo nome em produção. Também é criadora do protesto "Eu Não Mereço Ser Estuprada". É jornalista pela USP e especialista em Relações Internacionais pela UnB.