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Três polêmicas sobre a Lei Rouanet, alvo de pedido de CPI e da Lava Jato

Néli Pereira - Da BBC Brasil em São Paulo

03/06/2016 18h14

Apontada como um mecanismo importante de financiamento cultural no Brasil, a Lei Rouanet é constantemente alvo de críticas e voltou ao debate nacional por causa da extinção - agora revertida - do Ministério da Cultura na gestão interina de Michel Temer.

Agora, é também alvo de pedido de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) e está na mira da Polícia Federal na operação Lava Jato.

O Ministério da Transparência confirmou nesta sexta-feira que recebeu e deu encaminhamento a um pedido de informações da Superintendência da PF no Paraná sobre os cem maiores recebedores dos recursos nos últimos 10 anos.

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A Lei Rouanet foi criada em 1991, durante o governo Collor, e permite que produtores e instituições captem, junto a pessoas físicas e jurídicas, recursos para financiar projetos culturais. O valor destinado a esses projetos pode ser deduzido integralmente do Imposto de Renda a pagar.

Seus críticos afirmam que as verbas são muitas vezes alocadas mediante critérios políticos e acabam beneficiando iniciativas que seriam lucrativas mesmo sem qualquer incentivo.

Por outro lado, a lei é vista por artistas independentes como a única forma de viabilizar seus projetos. Quando assumiu a ainda Secretaria Nacional de Cultura, o agora ministro Marcelo Calero disse que o dispositivo não pode ser "satanizado".

"O que não pode acontecer é essa satanização de um instrumento que tem se revelado o principal financiador da cultura. Acho que as críticas são bem-vindas, há distorções a serem corrigidas, mas não podemos demonizar a Lei Rouanet", afirmou aos jornalistas na ocasião.

A BBC Brasil listou as três principais polêmicas envolvendo a lei - e algumas das iniciativas que receberam os maiores incentivos em 2015 nas áreas de música e artes cênicas, que concentram os projetos mais polêmicos.

1. Critérios

O pedido de abertura de CPI protocolado na Câmara pelos deputados Alberto Fraga (DEM-DF) e Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) questiona os critérios utilizados na aprovação de projetos e o apoio a eventos de grande porte, que teoricamente não precisariam de auxílio do governo.

A primeira polêmica nesse sentido ocorreu em 2006, quando a companhia canadense Cirque de Soleil conseguiu emplacar a captação de R$ 9,4 milhões para realizar no Brasil sua turnê Saltimbanco, que na época tinha ingressos de até R$ 370.

De lá para cá, outros casos - como uma biografia depois cancelada da cantora Claudia Leitte, que teve aval para obter recursos de até R$ 355 mil, e uma série de shows da mesma artista, que captou R$ 5,8 milhões em 2013 - também foram alvo de contestações.

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Essas críticas e discussões sobre o apoio a projetos rentáveis culminaram na decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), em fevereiro deste ano, de proibir o MinC de aprovar subsídios para iniciativas com "forte potencial lucrativo" pela Lei Rouanet. Ainda não há prazo para a medida entrar em vigor.

A proposta de abertura da CPI questiona ainda o repasse a artistas consagrados e o acesso aos benefícios.

2. Críticas às 'panelinhas'

No rápido intervalo em que o MinC esteve extinto - foram apenas cinco dias antes que Temer revisasse a ideia de transformá-lo em secretaria submetida ao Ministério da Educação -, inúmeros artistas se manifestaram contra a decisão.

Isso, por sua vez, despertou críticas de que o protesto de nomes como Chico Buarque, Leticia Sabatella e Luan Santana seria reação a um eventual fim da Lei Rouanet.

Na época, uma imagem começou a circular na internet com fotos de artistas que supostamente apoiariam a presidente Dilma Rousseff e teriam recebido patrocínio da lei de incentivo. O material acusava esses profissionais de trocarem esses recursos por apoio político.

A cantora Maria Bethânia, por exemplo, aparece na imagem como se tivesse recebido R$ 3,7 milhões da Lei Rouanet. Já Chico Buarque aparece com a cifra de R$ 13 milhões.

Um levantamento feito pela BBC Brasil mostra que, no ano passado, produtoras críticas ao PT também receberam volumes expressivos. Um exemplo é a Moeller e Botelho, que captou mais de R$ 4 milhões com espetáculos como Nine e Kiss me Kate.

Muitos dos artistas acusados de receberem patrocínio - caso de Chico Buarque - nunca pediram diretamente recursos da Rouanet ou de qualquer outra lei de renúncia fiscal.

Já Bethânia, que em 2011 desistiu de criar um site de poesias após receber uma enxurrada de críticas por causa da aprovação de R$ 1,3 milhão para o projeto, obteve no ano passado R$ 1,1 milhão para um disco comemorativo de seus 50 anos de carreira.

3. Centralização dos recursos

O levantamento da BBC Brasil foi feito com base nas informações do Salic (Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura), que torna públicos os projetos, seus proponentes e os valores envolvidos.

No cruzamento dos dados, a centralização dos incentivos na região Sudeste do país é facilmente identificada. O eixo Rio-SP aparece não somente com o maior número de projetos aprovados, mas também com os maiores valores.

Dos quase R$ 434 milhões dedicados às artes cênicas em 2015, R$ 182 milhões foram direcionados para iniciativas de São Paulo, enquanto o Rio recebeu cerca de R$ 100 milhões.

Para comparação, o Pará inteiro respondeu por apenas R$ 105 mil, o que equivale a 0,1% dos incentivos concedidos a propostas fluminenses.

Em lugares como Paraíba, Rondônia, Amazonas, Maranhão e Alagoas, o número de projetos aprovados não chega a dez, enquanto no Rio de Janeiro e em São Paulo esse número ultrapassa facilmente a marca dos 100 somente na área de artes cênicas.

O ex-ministro da Cultura, Juca Ferreira, afirmou à BBC Brasil que 80% dos projetos liberados para captação em 2015 são desses dois Estados.

As cinco empresas que mais captaram recursos no ano de 2015 são do eixo Rio-SP - os valores variam entre R$ 13 milhões e R$ 21 milhões. (veja quadro)

LÍDERES EM CAPTAÇÕES VIA LEI ROUANET EM 2015

1- Aventura Entretenimento Ltda. R$ 21,7 milhões

2- Instituto Tomie Ohtake R$ 19,7 milhões

3- Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand R$ 17,7 milhões

4- Instituto Itaú Cultural R$ 14,7 milhões

5- T4F Entretenimento S.A. R$ 13,4 milhões

Fonte: SalicNet/MinC

Um dos argumentos para o pedido de abertura de CPI seria a concentração de benefícios a segmentos e beneficiários específicos, sugerindo que algumas áreas e alguns interessados são favorecidos nas aprovações.

No levantamento realizado pela BBC Brasil, essa concentração se confirma em parte.

Ao analisar os maiores autores de pedidos nos anos de 2015 e 2016, empresas como Instituto Itaú Cultural, T4F Entretenimento S.A. e Instituto Tomie Ohtake aparecem na lista nos dois anos seguidos, o que confirmaria que algumas grandes empresas recebem um volume expressivo de incentivos todos os anos.

Em São Paulo, por exemplo, a T4F (Time for Fun) recebeu quase 10% de todo o valor destinado ao Estado em 2015 para o segmento de artes cênicas: aproximadamente R$ 18 milhões foram aprovados para a empresa de entretenimento.

Esse valor foi direcionado a apenas cinco projetos: os musicais Wicked (R$ 9 milhões), Mudança de Hábito (R$ 3,2 milhões) e Antes Tarde do que Nunca (R$ 1,16 milhão) e os espetáculos Disney on Ice (R$ 4,9 milhões) e Fuerza Bruta (R$ 200 mil).

O festival de música Rock in Rio também captou R$ 2 milhões em 2015.

Apesar das críticas, iniciativas incentivadas não são proibidas de obter lucro. Os ingressos para Wicked, por exemplo, chegam a custar até R$ 280.

Ao mesmo tempo, em número, há uma variedade de beneficiados: foram 421 pessoas físicas e 2.711 jurídicas no ano passado. Ou seja, a legislação cumpre com a proposta de beneficiar pequenos projetos e artistas iniciantes, ainda que com valores menores.

Projetos educativos, manutenção de salas de cinema, preservação de acervos e restauração de patrimônios materiais e imateriais também recebem incentivos da Lei Rouanet. Assim como eventos culturais menos populares, como concertos de música erudita e espetáculos de ópera.

O futuro da lei

Não se sabe se o governo Temer, mesmo com a decisão de reativar o Ministério da Cultura, vai manter a Rouanet como está. Há uma proposta, já aprovado na Câmara e aguardando decisão do Senado, para modificar a lei e corrigir as consideradas as distorções: concentração de recursos e apelo aos projetos mais lucrativos.

O projeto nº 6.772/2010, chamado de ProCultura, traria um novo modelo de financiamento federal à cultura e mudanças substanciais no mecanismo de incentivo cultural por meio de renúncia fiscal, estabelecendo mecanismos de regionalização dos recursos.

Ainda não há data para a apreciação pelos senadores.