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Fui chicoteado por organizar festa gay em meu país, diz africano que pede asilo aos EUA

Jovem gay do Zimbábue pede asilo nos EUA para fugir de discriminação - BBC Brasil
Jovem gay do Zimbábue pede asilo nos EUA para fugir de discriminação Imagem: BBC Brasil

João Fellet - @joaofellet

Da BBC Brasil em Washington

21/06/2016 15h53

A possibilidade de que a homofobia seja uma das causas do ataque que matou 49 pessoas na boate Pulse, em Orlando, jogou luz sobre a vulnerabilidade experimentada por lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) nos Estados Unidos.

Ainda assim, o país é visto como um dos mais avançados em políticas igualitárias nas Américas.

Segundo a ONG Human Rights Campain, cerca de 4,8 mil integrantes da comunidade LGBT buscam asilo nos EUA todos os anos para fugir da discriminação em suas terras natais - a legislação americana ampara pedidos de pessoas perseguidas por sua sexualidade.

A BBC Brasil entrevistou um jovem do Zimbábue que aguarda, em Washington, a análise de seu caso - por razões de segurança, ele pediu para não ter o nome publicado. Leia o depoimento:

"Quando cheguei aos Estados Unidos, era muito difícil me expressar de maneira mais livre. Era como se no meu país tivessem acionado um botão na minha cabeça e esse botão continuasse acionado mesmo depois que eu saí de lá.

Se você é gay, é natural que tenha alguns comportamentos difíceis de esconder. Mas eu aprendi a reprimi-los por uma questão de sobrevivência. Não podia andar, falar ou sentar de certas maneiras para não ser reconhecido como gay.

Também não podia usar brincos. Eu tinha os furos, mas, quando os usava, as pessoas me olhavam de tal forma que resolvi guardá-los. Quando cheguei aos Estados Unidos, vi caras indo trabalhar com ternos caros e brincos e pensei: 'É sério? Eles vão trabalhar assim?'

A coisa mais engraçada foi quando fui fazer uma foto 3x4. Pedi um minuto para tirar os brincos, mas o fotógrafo americano me disse: 'Por que você tem de tirá-los? Fique com eles, a foto vai ficar legal'. São coisas que nunca pensei que aconteceriam desde que me aceitei como gay.

Ser gay ou lésbica no Zimbábue é a coisa mais difícil que pode acontecer com uma pessoa. Se fosse uma questão de escolha, a maioria deixaria de ser. Lá a Constituição proíbe qualquer pessoa de cometer atos homossexuais. E culturalmente é um tabu: se você é um homem, espera-se que se case com uma mulher e forme uma família.

Muitos dizem que homossexualidade é algo importado dos países ocidentais, que é algo não africano. Mas, se você analisar a história, verá que ela sempre esteve lá.

Minha mãe sabia sobre minha sexualidade. Ela era cristã e muito religiosa, mas acabou aceitando. Eu olhava para ela como um escudo para toda a família; era minha proteção.

Quando ela morreu, percebi que todos os parentes que pareciam me apoiar estavam na verdade fingindo, por respeito à minha mãe.

No funeral dela, alguns dos meus tios disseram que não queriam me ver mais. Eu estava de luto, minha mãe tinha acabado de morrer, mas me avisaram ali mesmo.

Depois disso, não fui mais convidado a reuniões familiares. Falavam que tinham nojo porque era homossexual. Não sabia o que ocorreria se autoridades lhes perguntassem o que sabiam de mim. Não ficaria surpreso se me traíssem e dessem alguma prova das coisas que andava fazendo.

Havia muitos momentos em que minha vida corria perigo. Eu e meu parceiro não conseguíamos dormir, porque não sabíamos se a polícia viria nos pegar. Nossa casa foi invadida muitas vezes.

No fim, você se torna uma pessoa muito solitária. Se não estiver com amigos gays, não está com ninguém.

Não há boates nem bares gays no Zimbábue, e se houvesse ninguém os frequentaria para não ser visado. Eu me comunicava com meus amigos em pequenos grupos. Nos encontrávamos em bares e tínhamos de ser muito discretos, porque mesmo outros clientes poderiam nos agredir se achassem que estávamos tentando seduzi-los.

Quando estava lá, tentamos organizar duas ou três festas gays que não acabaram bem. Pessoas foram agredidas e assediadas por policiais. Alguns foram parar na prisão. Eu mesmo fui preso quatro ou cinco vezes.

Eles te levam para a delegacia e tentam procurar algo que possa te incriminar, já que não te prenderam em flagrante. Na maioria das vezes, te seguram por várias horas.

Se você tenta dizer algo que não entendem, batem em você. Apanhei três vezes com chicotes. Eu me cobria com os braços para me proteger e levava chicotadas no corpo todo.

Eventualmente me liberavam, mas era uma forma de intimidar, de dizer "pare de fazer isso, ou voltaremos para pegá-lo".

Pensei que, se continuasse no Zimbábue, algo iria acontecer comigo. Tinha de sair por minha segurança e pela do meu parceiro, porque ele estava no armário. Se a família dele descobrisse que era gay, ele seria deserdado.

Também podíamos ser abduzidos. O governo faz muito disso: houve muitas abduções, e nunca mais vimos aquelas pessoas.

Peguei um avião e vim para os EUA. Ainda estou esperando pela minha entrevista no processo de asilo - não tenho permissão para trabalhar e tenho que aguardar para pedir uma autorização. Um amigo tem sido muito generoso comigo e me ajudado desde o início do processo. Estou morando na casa dele com meu parceiro.

O ataque em Orlando foi perturbador, porque me lembrou do que eu fugi. Mesmo assim, acho que estou mais seguro aqui que no Zimbábue. Posso dizer o que quero sem sentir que virão me atacar a qualquer momento.

Lá, é perigoso que as pessoas façam as coisas às escondidas. Não há a menor chance de alguém sair apresentando o namorado aos outros. As relações são mais curtas, porque assim é mais fácil escondê-las. Então há mais promiscuidade, o que faz as doenças se espalharem.

Nunca experimentei racismo nos EUA, mas sinto que há certa xenofobia e um conflito entre africanos e afroamericanos. Talvez eles (afroamericanos) nos olhem como os pobres, sintam que são melhores que nós. E africanos aqui evitam ir aos lugares frequentados só por afroamericanos: eles preferem ir a lugares com um público mais misturado, onde sintam que não serão olhados com desprezo.

Eu acho que somos o mesmo povo e não deveria haver razões para que nos olhássemos de forma diferente.

Se puder ficar aqui, pretendo fazer com que outros saibam o que está acontecendo no meu país na esperança de que todos os gays no Zimbábue possam viver uma vida melhor.

Sinto falta de casa - porque é minha casa, é de onde venho. Sinto falta de estar no meu proprio país e de usufruir meus direitos enquanto cidadão. Sei que voltarei um dia."

Cantora Lady Gaga participa de vigília em memória das vítimas de Orlando

AFP