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Último pilar do liberalismo ocidental? Os desafios de Angela Merkel

Montagem mostra a chanceler (premiê) alemã, Angela Merkel, nos anos 2009, 2013 e 2016, em Berlim - AFP
Montagem mostra a chanceler (premiê) alemã, Angela Merkel, nos anos 2009, 2013 e 2016, em Berlim Imagem: AFP

Ángel Bermúdez (@angelbermudez)

BBC Mundo

22/11/2016 20h10

"A noite em que o Ocidente morreu."

Esse foi o título capa do diário berlinense B.Z. depois da vitória de Donald Trump na eleição presidencial dos EUA, no último dia 8 de novembro.

A declaração refletia a leitura de que algumas partes da Europa concordam com as ideias expressas por Trump durante sua campanha - ele questionou a relevância da Otan (Organização do

Tratado do Atlântico Norte), criticou o livre comércio, negou as alterações climáticas e prometeu erguer um muro no país e endurecer as leis para conter o fluxo de imigrantes.

Dias depois, o jornal americano "The New York Times" publicou uma análise intitulada "Com a saída de Obama do cenário mundial, Angela Merkel pode ser a última defensora da ordem liberal do Ocidente". Nela, destacou a crise que aflige a ordem democrática fixada entre os Estados Unidos e aliados europeus desde o término da 2ª Guerra Mundial.

No domingo, Merkel anunciou sua intenção de concorrer a um quarto mandato como chanceler da Alemanha e, ao fazê-lo, rejeitou a ideia de que corresponderia a ela o papel solitário de manter o liberalismo ocidental vivo.

"Isso é grotesco, algo absurdo", disse ela a repórteres.

Mas muitos analistas veem a revisão da situação de várias potências ocidentais como um espelho das rachaduras e dificuldades enfrentadas em todos esses lugares.

Uma ordem em crise

No Reino Unido, a vitória do Brexit com uma campanha baseada na rejeição à imigração e à União Europeia coloca o governo de Theresa May em uma posição difícil para liderar a defesa das ideias de abertura e integração - próprias da ordem liberal.

Na França, a opção em ascensão é a ultradireitista Frente Nacional, cuja líder Marine Le Pen celebrou o Brexit como uma conquista pessoal e anunciou que, sob sua liderança, seu país também deixaria a União Europeia.

Com o alto nível de desaprovação da gestão do presidente socialista François Hollande, um aliado natural de Merkel na integração europeia, não se pode excluir a possibilidade de uma vitória de Le Pen nas eleições presidenciais de 2017.

Analistas franceses já assumem que ela vai conseguir passar para o segundo turno, mas ainda têm dúvidas se conseguirá vencer as eleições.

Na Itália e na Espanha, a fraqueza dos governos do social-democrata Matteo Renzi e do direitista Mariano Rajoy reduzem sua margem de manobra e capacidade de projetar a defesa dos valores ocidentais.

A Áustria, por sua vez, enfrenta a possibilidade de eleger no próximo mês o seu primeiro presidente de extrema-direita, enquanto as eleições parlamentares de março na Holanda poderão levar ao poder o ultranacionalista Geert Wilders, que prega contra o Islã e também defende a saída da UE.

Na Hungria e na Polônia, a direita populista e "eurocética" já está no poder.

17.nov.2016 - O presidente dos EUA, Barack Obama, é recebido pela chanceler (premiê) alemã, Angela Merkel, na Chancelaria em Berlim - Michael Sohn/AP - Michael Sohn/AP
17.nov.2016 - O presidente dos EUA, Barack Obama, é recebido por Angela Merkel, na Chancelaria em Berlim
Imagem: Michael Sohn/AP

O fator Putin

Se durante a campanha Donald Trump deixou em dúvida o seu apoio a muitas das ideias de ordem liberal ocidental, sua aparente simpatia pelo presidente russo, Vladimir Putin, não melhora as coisas.

Especialmente em um momento em que a Rússia está se mostrando cada vez mais assertiva em seu confronto com as potências ocidentais em questões como a situação na Ucrânia ou a guerra na Síria.

De fato, Merkel tem desempenhado um papel-chave em manter os Estados da União Europeia unidos em torno das sanções à Rússia ante sua anexação da Crimeia e o apoio dado por Moscou aos separatistas no leste da Ucrânia.

Com Trump na Casa Branca, não está claro se essas sanções poderão ser mantidas.

"Os desafios que as democracias ocidentais enfrentam em 2016 se aproximam um fim precário, com uma amplitude e intensidade não vistas desde o início da década de 1980, quando a União Soviética de Leonid Brezhnev foi expandindo seu arsenal nuclear e reprimindo o movimento Solidariedade na Polônia ", disse um editorial publicado no fim de semana pelo jornal britânico "The Observer".

"A vitória de Trump e os riscos de governos de direita na Holanda e na França fazem de Angela Merkel fez uma figura fundamental para a sobrevivência dos valores democráticos", apontou a publicação.

Problemas em casa

Mas Merkel enfrenta seus próprios desafios internos.

Apesar de sua popularidade permanecer acima de 50%, a sua decisão de abrir as portas do país para as pessoas que fogem da guerra na Síria e a consequente chegada de um milhão de refugiados ao país em 2015 enfraqueceu a sua imagem interna e deu asas a movimentos nacionalistas e xenófobos.

O partido alemão de extrema-direita conseguiu numerosas vitórias eleitorais que lhe permitiram ter uma presença em 10 dos 16 legislativos regionais e parece pronto para alcançar presença no Bundestag, o Parlamento federal, durante as eleições do próximo ano.

"Uma pessoa sozinha não pode resolver tudo. Só juntos somos fortes. Assim, eu quero cumprir o que é meu dever como chanceler", disse Merkel na sexta-feira passada, durante uma coletiva de imprensa que dividiu com o espanhol Mariano Rajoy.

No entanto, as expectativas que são colocadas sobre ela vão muito além.

Como resumido pelo "The Observer": "Sem a presença de Obama para defender a ordem democrática liberal, Merkel poderia ser a última mulher de pé".