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'Minha salvação foi a persistência de viver', conta filha de vítima de acidente da Gol

Mauro Romano foi uma das 154 vítimas do desastre da Gol, em 2006 - Arquivo pessoal
Mauro Romano foi uma das 154 vítimas do desastre da Gol, em 2006 Imagem: Arquivo pessoal

Débora Thomé

Especial para a BBC Brasil

01/12/2016 09h02

A primeira dor que senti, assim que a notícia chegou, foi a física.

Uma pancada à direita do coração, entre as costelas. Parecia que algo havia sido arrancado. Do mesmo lugar foi de onde veio o choro profundo e dolorido.

A partir daí, foram noites de insônia em que, se conseguia dormir, não podia acordar. Sonhava, tinha pesadelos e pensava, afinal, o que viria depois do silêncio?

Alguns conseguem sobreviver com a raiva e a luta diante da injustiça; outros sucumbem à tristeza profunda, mais que compreensível. E há aqueles que, como eu, só encontram um consolo: sobreviver intensamente, quase que por teimosia.

Costumo dizer que sou otimista por pura covardia, por incapacidade completa de lidar com o tamanho da minha dor. Assim foi em 2006 quando meu padrasto - Mauro Romano, que, de tanto amar, chamava pai - foi uma das 154 vítimas do voo 1907 da Gol (Nota da Redação: a aeronave colidiu no ar com um jato particular quando fazia a rota Manaus-Rio de Janeiro, e caiu em uma área de floresta no Estado do Mato Grosso).

Ele era botafoguense e adorava samba. Tinha 50 anos, três filhos e não pode conhecer os netos, que nasceriam depois.

Insurgência

Perdas são doloridas para os seus, não importa a causa mortis. Porém, os acidentes trazem algumas peculiaridades que dificultam um processo já penoso. No nosso caso, foram dias para que pudéssemos fazer a cremação, tempo em que fomos atormentados por advogados inescrupulosos e jornalistas inconvenientes que nos queriam em programas sensacionalistas.

Desligamos a televisão e os telefones, deixamos de ler os jornais. Era a nossa dor, mas o mundo inteiro parecia querer sofrê-la conosco. A casa ficou em vigília permanente, tudo em volta parecia estar em câmera lenta: os carros, as conversas, o trabalho. O vazio ocupava todos os espaços.

Depois de 15 dias, quando o corpo finalmente foi localizado, fomos fazer o reconhecimento mais perto do local do acidente, bem longe de nossa cidade. No meu coração, só tinha uma certeza: eu precisava voltar a ver alguma beleza no viver; aquele breu estava além do que eu era capaz de suportar. Entre ir e voltar dessa viagem, cometi meu primeiro ato de insurgência: saí para tomar um chope.

"Já que você ficou por aqui, viva", era a voz interna que me cutucava. Ali, eu reconheci que a minha salvação estava na persistência de viver.

Nossa sociedade se desacostumou com a ideia de que as pessoas morrem, de que a vida - essa vida, pelo menos - tem fim. Vivemos muito, geralmente vivemos com saúde. Mas é justamente quando a morte nos surpreende na esquina que temos a clara noção da urgência.

Se houve algo que aprendi com a morte do meu pai, é que a vida pode ser muito curta para as tantas coisas que se têm para fazer, para trocar e para sentir.

Minha única escapatória, a partir de então, foi tentar viver com um compromisso enorme comigo mesma, com o meu papel no mundo, tendo a sensação clara de que a gente não pode estar aqui a passeio. No processo, vou aprendendo que alguns limites somos nós que nos impomos. Dá um certo trabalho, mas tem lá suas compensações.

Nesses 10 anos que se passaram (10 aniversários, 10 Natais, nascimentos e outros falecimentos), é muito comum que as pessoas me perguntem como fizemos para conseguir viver bem depois do acidente, como eu fiz para seguir viajando pelo mundo, uma das minhas maiores paixões.

Cláusulas

Mesmo com o tempo, não existe um momento da vida em que meu pai e toda essa história estejam ausentes, embora a presença se esfumace com o tempo. Além disso, continuo cheia de medos. Porém, assumi algumas cláusulas que têm me ajudado muito nessa missão.

  • Falo "eu te amo" para as mais variadas pessoas, quantas vezes me sentir amando, mesmo correndo o risco de parecer tola ou exagerada.
  • Não durmo brigada ou mal esclarecida com pessoas que amo.
  • Não deixo de fazer o que quero por alguma limitação social. Danço sem pensar em quem me olha, grito, choro no cinema.
  • Chego mais tarde ao trabalho quando o dia está bom para a praia.
  • Aceito convites de última hora.
  • Experimento novos sabores de sorvete; descubro caminhos novos; bebo sozinha no lugar mais bonito que encontrar.
  • Fico emocionada de ver o balé das árvores da serra, de ver a bruma, de encontrar amigas de infância, de ouvir um bloco de carnaval, de descobrir que há coleções de orquídeas nas ruas da minha cidade.
  • Abraço minhas amigas e amigos, frequento a minha família.

E, cada vez mais, tento ligar cada vez menos para as pequenezas.

Apenas há pouco tempo atentei para a expressão "vale a pena", que traz consigo a ideia de "vale a dor". Viver é este treco: fazer valer as dores que se têm. Ou um eterno degustar e digerir. No fundo, o que nos sobra sempre é o amar e, se possível, de troco, ser amada.

PS: Quando a BBC Brasil me pediu este texto, na tarde da tragédia da Chapecoense, que vitimou amigos e me abalou bastante, estava comendo minha sobremesa favorita, que foi seguida por dois piscos sour.

Ambos momentos na companhia de pessoas amadas. Entre as cláusulas pétreas, afinal, está também viver no mundo, e não apenas perdida nas telas.

Deborah Thomé é jornalista e cientista. E filha de Mauro Romano