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'Crise entre Legislativo e Judiciário é a maior da história recente do país', diz historiador Boris Fausto

Na visão do historiador, Temer precisa fazer algo para não passar em branco - Zanone Fraissat/Folhapress
Na visão do historiador, Temer precisa fazer algo para não passar em branco Imagem: Zanone Fraissat/Folhapress

Ricardo Senra

Em São Paulo

08/12/2016 06h54

Se publicasse agora uma nova edição de História do Brasil, livro didático número 1 dos principais vestibulares do país, Boris Fausto talvez escrevesse o que disse à BBC Brasil na tarde desta terça-feira: "Com essa gravidade e este impacto, a crise entre Legislativo e Judiciário é a maior da história recente do país".

Aos 86 anos, o historiador e cientista social, três vezes ganhador do prêmio Jabuti (de literatura), referia-se à recusa do senador Renan Calheiros em obedecer a uma decisão do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou seu afastamento da presidência da Senado após se tornar réu - em um dos 12 inquéritos que enfrenta.

Nesta terça-feira, a decisão de Marco Aurélio foi submetida ao conjunto de ministros no plenário do STF. O resultado se inverteu e Renan foi mantido no cargo - apesar de não poder mais figurar entre os possíveis sucessores imediatos do presidente Michel Temer.

"É um arranjo estranho. Uma fórmula para diminuir o fogo da crise. Mas não elimina a crise", avalia Fausto.

À BBC Brasil, o historiador elogiou a Operação Lava Jato, comentou o que classifica como "riscos" das manifestações de rua e das 10 medidas contra a corrupção. Fausto também comparou o momento atual e o do golpe militar de 1964 e ainda avaliou o governo Temer ("que não sabemos se chega ao vim").

E deu um recado ao juiz Sergio Moro --que nos últimos dias voltou a despertar controvérsia graças a uma foto em que aparece, rindo, ao lado do senador Aécio Neves (PSDB).

'Se eu pudesse dar um conselho, do alto de muitas décadas de experiência, eu diria a ele: 'Não apareça muito, do alto da sua função. Não é prudente. Não acho bom'.

Leia os principais trechos da entrevista:

BBC Brasil - Numa perspectiva histórica, como avalia a recusa de Renan Calheiros à determinação do ministro Marco Aurélio pelo seu afastamento da presidência do Senado?

Boris Fausto - É uma coisa gravíssima. Este desencontro entre a mesa do Senado e o Supremo, embora todos os ministros não apoiassem a resolução de afastar o Renan, mostra que entramos em uma nova fase: a crise do funcionamento das instituições.

Até aqui, dizia-se que as instituições estavam preservadas e que o trabalho da Lava Jato prosseguia. Mas, agora, ultrapassamos este momento, e a harmonia entre poderes começa a ruir. Isso ocorre justamente quando todas as apurações [sobre corrupção] que vêm desde o impeachment estão se processando. É uma situação de enorme desestabilidade.

BBC Brasil - Como avalia a reviravolta desta terça-feira do plenário do Supremo, que optou pela manutenção de Calheiros na presidência do Senado, mas fora da linha sucessória da Presidência da República?

Boris Fausto - É um arranjo estranho. É uma fórmula para diminuir o fogo da crise. Mas não elimina a crise. Resolve neste momento, supera-se esta situação específica. Mas uma saída como esta, que contraria inclusive decisões anteriores, é evidentemente um arranjo para resolver uma situação. Pelo que percebo, não é uma boa coisa.

BBC Brasil - Há exemplos semelhantes a este descompasso entre Legislativo e Judiciário na história brasileira?

Boris Fausto - Não me ocorrem. Com esta gravidade, com este impacto, a crise entre Legislativo e Judiciário é a maior da história recente do país.

BBC Brasil - E o que pode acontecer quando um poder desobedece ao outro? A quem a sociedade pode recorrer?

Boris Fausto - Este é um choque na cúpula das instituições. Então não tem quem resolva, a não ser eles próprios. É preciso que haja bom senso entre os poderes.

Tudo isso é um produto direto do ambiente difícil que estamos vivendo. É uma transição muito dolorosa. A oposição [PT e partidos aliados] está claramente usando esta crise como pretexto para jogar a segunda votação da PEC do teto dos gastos para depois do recesso parlamentar. Isso é nítido, eles estão muito felizes.

renan bbc - Adriano Machado/Reuters - Adriano Machado/Reuters
Supremo decidiu que Renan continua na presidência do Senado
Imagem: Adriano Machado/Reuters

BBC Brasil - E, de outro lado, PMDB e políticos da base aceleram esta votação em meio à mesma turbulência...

Boris Fausto - Pois é. E, no meio de tudo isso, há uma enorme pressão social, fundamentalmente positiva. É ela que tem sustentado a apuração de atos de corrupção e que pressiona pelo afastamento de corruptos. Mas isso envolve certos riscos. As manifestações de rua podem continuar, mas não vão apontar uma saída. Além disso, há sempre o risco de que parte do Judiciário tome decisões ouvindo diretamente a voz das ruas, e isso é sempre discutível.

BBC Brasil - Por que é discutível?

Boris Fausto - É discutível porque a voz das ruas tem um ímpeto que não é próprio àquele que julga, que interpreta fatos à luz da legislação. A voz das ruas é movida por paixão, não necessariamente por razão.

BBC Brasil - Falando nas ruas: os protestos também revelam um forte descontentamento com a política e com os políticos, o que não ocorre só no Brasil.

Boris Fausto - A desmoralização dos políticos é visível há muito tempo. E os políticos que estão no poder não fazem nada para restaurar a confiança. Ou fazem muito pouco. Volta e meia o Congresso surpreende a sociedade com decisões que vão no sentido oposto daquilo que a sociedade esta pleiteando. Isso se liga a um problema de crise de lideranças.

Uma das razões é que a política virou um negócio, que pode ser atraente para negociantes, mas não para os preocupados com valores, princípios. Desse vácuo surgem os personagens do mercado, como Donald Trump, no embalo da ilusão de que homens de fora da política possam realizar aquilo que os políticos não podem.

BBC Brasil - Isso é novidade?

Boris Fausto - Isso é um velho sonho no Brasil. O sonho do governo dos técnicos. Surgiu ligado ao movimento dos tenentes, na década de 1920, sobretudo quando partilharam o poder com Getulio Vargas na década de 1930. Eles defendiam conselhos técnicos de governo, um governo inspirado em regras, naquilo que é correto, e isso era claramente uma posição antipolítica, como a de agora.

BBC Brasil - E o governo Temer até agora, como avalia?

Boris Fausto - O que mais pesa na personalidade dele são os muitos e muitos anos que viveu como negociador de bastidores. De repente vem a guinada para a Presidência da República --e mais, numa situação política e econômica muto complicada.

Não é da noite para o dia que uma pessoa consegue mudar seu papel. Se ele quer deixar algum legado nesta presidência meteórica que a gente não sabe se vai chegar ao fim, ele tem que aprovar algumas coisas. Reforma da previdência, teto de gastos, tudo isso são coisas que marcam. Mas ele não parece ser um homem talhado para fazer tantas mudanças. Precisaria ser alguém com muita legitimidade, muita autoridade, para que as pessoas ouvissem, entendessem e aceitassem o seu discurso.

BBC Brasil - As reformas que o senhor citou - previdência, teto de gastos etc - são temas urgentes há bastante tempo, mas foram deixados de lado por todos os presidentes eleitos na última década, salvo políticas pontuais. Por que justamente Temer, que não teve o voto popular, decidiu levá-las à frente?

Boris Fausto - Fernando Henrique Cardoso tentou uma reforma da previdência mais profunda, mas perdeu no Congresso por um voto. Outros fizeram algumas coisas aqui e ali, como você diz, mas nenhum ousou enfrentar o problema. Gente eleita sempre toma atitudes pensando na sua massa de eleitores, em como será a reação deles. Então, os presidentes iam adiando. O governo Temer começa diferente e alguma coisa ele tem que fazer, porque ele não pode passar em branco.

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BBC Brasil - A situação atual remete o senhor a outros momentos críticos do país? O contexto em 1964 (ano do golpe militar) era similar, diferente?

Boris Fausto - Este é um tema bom, porque a gente tem que que fazer distinções. A crise de agora é mais grave como crise do que a de 1964. Mas o quadro brasileiro é bem mais estável e a sociedade, mais madura. A Guerra Fria acabou. Essa arma do comunismo, que ainda é jogada por alguns, nao é mais relevante.

Vivemos outra conjuntura. E há, mal ou bem, um horizonte democrático. Meio fragilizado nos últimos tempos, mas existe. Vou repetir uma frase já batida, mas que é boa. A maioria de nós hoje sabemos de cor os nomes de todos os ministros do Supremo. Quem sabe os nomes dos chefes militares? Há uma diferença imensa. Não dá para comparar.

BBC Brasil - O senhor quer dizer que, em 1964, as pessoas sabiam quem eram os chefes militares?

Boris Fausto - Ah, sabiam. Sabiam. Todo mundo sabia quando o ministro da Guerra ia ao hospital, por exemplo. Com todo o risco que enfrentamos agora, nós podemos ser muito mais esperançosos do que naquela época. É essa minha impressão pessoal.

BBC Brasil - Desde o impeachment, passando por decisões polêmicas da justiça federal do Paraná, muita gente fala no fim da democracia no Brasil. Qual é a sua opinião?

Boris Fausto - É um discurso de má fé, sinceramente, vindo de quem já foi visado e já teve suas principais figuras presas ou envolvidas em escândalos etc.

Mas existem riscos, uma judicialização da política. Há excessos em alguns jovens promotores, alguns não tão jovens assim. Na lista das 10 medidas contra a corrupção proposta pelo Ministério Público havia coisas perigosas, como colher provas ilegais para fins legais ou o tal teste de honestidade para pessoas contratadas. Isso é preocupante, por melhores que sejam as intenções.

Mas, no conjunto, eu diria que o Judiciário foi forçado a entrar nessa pela falência total do Legislativo e do Executivo. O Legislativo andou parado por muito tempo, em inércia total. O Ministério Público, o Supremo, os juízes, eles preencheram este vazio. Sobretudo pelo seguinte: quem é que já viu uma tentativa tão grande de transformação dos nossos costumes políticos e empresariais? Prisões de poderosos, repatriação de bens desviados... Quem conseguiu, na história do Brasil, fazer isso? Coisas que nunca imaginamos estão acontecendo.

BBC Brasil - O senhor falou em judicialização da política e em riscos. Refere-se a que episódios?

Boris Fausto - Houve um ministro do Supremo Tribunal, José Linhares, que assumiu antes das eleições, em 1945, na redemocratização. Mas se notabilizou por distribuir cartórios a parentes e amigos. Então você vê que os males vêm de longe. E, veja, não digo que dona Cármen Lúcia (presidente do STF) faria uma coisa dessas. Longe disso.

Mas temos sinais do que pode ocorrer. Por exemplo, algo que sou insuspeito para falar, porque tenho uma visão negativa sobre esta figura. A condução coercitiva de Lula foi exagrada. E eu sou insuspeito. Quando os promotores fizeram aquele esquema, colocando Lula lá em cima sem provas contundentes, também não é bom. Estes são, então, os riscos da ação de uma gente de boa fé, mas que pode se precipitar em excessos, que podem crescer. Mas, repito: o pretexto dos excessos não deve ser usado. Não há proporção entre o que foi feito de bom para o pais e estes excessos pontuais cometidos.

BBC Brasil - Enquanto conversamos, circulam com velocidade enorme nas redes sociais fotos do juiz Sergio Moro ao lado do senador Aécio Neves, citado em diversas delações premiadas, rindo juntos em um evento promovido por uma revista em São Paulo. Qual é sua opinião?

Boris Fausto - É melhor evitar. Não acho que isso influencie nos julgamentos, porque Aécio tem foro privilegiado. Mas convém evitar.

O Moro está muito em evidência. Se eu pudesse dar um conselho, do alto de muitas décadas de experiência, eu diria a ele: 'Não apareça muito, do alto da sua função. Não é prudente Não acho bom'.