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A surpreendente mudança de tom no discurso de Trump no Congresso americano

Presidente dos EUA, Donald Trump, faz seu primeiro discurso no Congresso norte-americano -  Win McNamee/Getty Images/AFP
Presidente dos EUA, Donald Trump, faz seu primeiro discurso no Congresso norte-americano Imagem: Win McNamee/Getty Images/AFP

01/03/2017 16h34

Pelo menos por uma noite, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, colocou de lado o tom bombástico e belicoso que marcou sua campanha.

Ele agiu e soou não muito diferente do que outros presidentes americanos que o antecederam.

Em seu primeiro pronunciamento em uma sessão conjunta do Congresso americano, depois de um primeiro mês turbulento, Trump fez um discurso convencional, na forma e no conteúdo, gerando surpresa.

Ele afirmou que os Estados Unidos estavam testemunhando "uma renovação do espírito americano".

Adotando um tom otimista e comedido, o republicano falou de "um novo capítulo da grandiosidade" do país.

Trump condenou os recentes atos de vandalismo a cemitérios judaicos e o tiroteio no Kansas que deixou um homem de origem indiana morto.

O pronunciamento, transmitido ao vivo no horário nobre da TV americana, tinha por objetivo reter a queda de sua popularidade depois de um início de mandato, no mínimo, controverso.

O teor do discurso era o mesmo - Trump defendeu novamente a construção do muro na fronteira com o México, citou as acusações (infundadas) de que imigrantes indocumentados são mais suscetíveis ao crime, falou sobre a 'América em 1º lugar' no campo econômico e cobrou maior comprometimento dos aliados dos Estados Unidos.

Mas, diferentemente de ocasiões anteriores, o pronunciamento foi mais suave.

Houve um momento antes do discurso em que as câmeras de TV flagraram Trump em sua limusine blindada, ensaiando o que viria a dizer. Aparentemente, a prática leva à perfeição. O republicano aparentava equilibrado, mas não petulante; enérgico, mas não forçado.

É claro que os clichês não ficaram de fora, assim como a retórica tipicamente política.

A frase "precisamos de coragem para compartilhar os sonhos que enchem nossos corações, de bravura para expressar as esperanças que atiçam nossos corações e de confiança para colocar em prática nossas esperanças e sonhos" foi um claro exemplo disso.

Além disso, como era esperado, Trump foi sutil quanto ao que pretende realizar. Nesse sentido, seu pronunciamento foi vago e generalista em relação à sua agenda.

No entanto, houve vários momentos-chave que definiram seu discurso que podem ter um impacto mais duradouro. São eles.

Saúde

Depois de gastar alguns minutos criticando o Obamacare, dirigindo-se diretamente aos democratas, Trump revelou o que pretende mudar.

Segundo o republicano, americanos com condições médicas pré-existentes devem ser capazes de obter cobertura. Trump cobrou que a transição do atual sistema para aqueles que não têm a saúde privada paga pelo empregador seja "estável". Os subsídios para o seguro-saúde devem ser combinados com isenções fiscais e contas poupança, liberando recursos isentos de impostos para serem gastos com despesas médicas, acrescentou ele.

Para Trump, os Estados precisam de "recursos e flexibilidade" para oferecer seguro médico para os pobres. Segundo ele, os preços dos medicamentos devem cair, e os médicos deveriam ter "maiores proteções legais".

Todas essas iniciativas vão encontrar resistência nos democratas. Algumas delas serão questionadas, inclusive, por republicanos. Pela primeira vez, no entanto, o presidente mostrou que está preparado para a luta.

Se seu nível de detalhamento foi bem-vindo, seu discurso acabou sendo minado no final pela típica retórica "trumpiana".

"Tudo que está errado em nosso país pode ser consertado", disse ele. "Cada problema pode ser resolvido. E toda família ferida pode achar a cura e a esperança".

Alguns dias antes, o presidente havia destacado que "ninguém sabia que a saúde poderia ser tão complicada". Agora, ele está prometendo mundos e fundos.

Neste sentido, os congressistas republicanos vão ter o trabalho facilitado.

A viúva enlutada

Foi, sem dúvida, o momento mais emocionante da noite. E talvez tenha sido um dos mais controversos.

Trump estava concluindo seu discurso quando apontou para Carryn Owens, viúva do soldado americano Ryan Owens, que foi morto durante uma ofensiva no Iêmen dias depois de o republicano ter sido empossado.

Enquanto o Congresso aplaudia a viúva enlutada, Trump disse que o legado do marido dela "está gravado na maternidade".

Como momento único, foi poderoso. Visto dentro do contexto da polêmica sobre a operação, que resultou na morte de 25 civis incluindo nove crianças (uma delas americana), foi extremamente político.

Trump citou seu Secretário de Defesa, James Mattis, dizendo que o ataque gerou "inteligência vital" - embora notícias veiculadas pela imprensa anteriormente mostravam que este pode não ter sido o caso.

O senador pelo Estado do Arizona, John McCain, chamou a operação de "fracasso". Já o pai do soldado morto, William Owens, se recusou a se encontrar com o presidente e pediu uma investigação formal sobre o incidente.

Ao destacar a operação, e lançar os holofotes sobre Carryn Owens, o presidente ofereceu uma resposta contundente às críticas.

Porém, a lembrança do episódio tende a gerar ainda mais polêmica.

Dinheiro público

Durante seu Discurso sobre o Estado de União (discurso anual feito pelo presidente americano diante do Congresso no qual ele apresenta suas propostas) de 1998, o ex-presidente Bill Clinton afirmou que a era do "Estado forte" tinha acabado.

No final de seu discurso na terça-feira, Trump disse que era "tempo para pensar" sobre essa lógica.

O "Estado forte", ao que parece, está voltando com tudo.

Os gastos com Defesa, como prometido na semana passada, devem ser incrementados em US$ 54 bilhões (cerca de R$ 168 bilhões).

Agora, Trump revelou o plano de seu programa de infraestrutura, estimado em US$ 1 trilhão (R$ 3,11 trilhões).

Embora ele tenha dito que parte do montante seria financiado pelo "capital privado" (uma ideia sobre a qual democratas se mantêm temerosos devido às possibilidades de corrupção ou abuso), o objetivo é digno de nota e o impacto nos gastos públicos será certamente significativo.

Isso sem falar na promessa de construir "um grande, grande muro ao longo de nossa fronteira ao Sul (com o México)", estimado em pelo menos US$ 12 bilhões (R$ 37,3 bilhões), e um "grande alívio fiscal para a classe média".

Sendo assim, o custo das promessas mencionadas em seu discurso tende a ser astronômico.

Em nenhum momento do discurso, contudo, houve menção sobre como esses programas seriam financiados.

Em meio a declarações constantes de integrantes do alto escalão de Trump sobre cortes no orçamento federal, as "escolhas difíceis" ficaram notavelmente de fora na noite de terça-feira.

A única referência à dívida pública - cuja redução foi outrora a principal prioridade para republicanos de todos os matizes - foi rápida e aconteceu durante as críticas de Trump às falhas de Obama no campo da economia.

De volta aos primeiros anos da gestão de George W. Bush, o então vice-presidente Dick Cheney disse uma frase que ficou para a posteridade: "Déficits (saldo negativo entre receitas e despesas) não importam".

Depois de oito anos, aqueles dias parecem estar de volta.

Apelo a união

Nas primeiras horas do dia 9 de novembro do ano passado, quando subiu ao palco para anunciar sua então improvável vitória nas eleições presidenciais, Trump fez um apelo para a união nacional.

"Agora é hora de curar as feridas da divisão", disse ele. "Digo a democratas e republicanos que é tempo para virem juntos como um povo unido".

Mas, desde aquele momento, Trump pareceu mais sintonizado com as necessidades e com os desejos de sua base de apoiadores, e menos interessado em estabelecer qualquer diálogo com democratas e independentes.

Em seu primeiro mês de governo, ele partiu para o confronto, tanto em palavras quanto em ações.

Então, na terça-feira à noite, a retórica de novembro ressurgiu no final.

"Democratas e republicanos devem se aproximar e se unir pelo bem de nosso país, e pelo bem dos americanos", afirmou Trump.

Talvez seja um reflexo de uma mudança na estratégia. Talvez seja um reconhecimento de que ele precisará pelo menos de algum apoio dos democratas no Congresso se ele quiser aprovar medidas mais ambiciosas de sua agenda legislativa.

No campo da imigração, especificamente, a mudança do tom foi chocante. Em meio ao alerta das ameaças representadas pela imigração ilegal ao mercado de trabalho, o presidente adotou um tom mais conciliador.

"Acredito que uma reforma real e positiva da imigração é possível, desde que foquemos nas seguintes metas: melhorar os empregos e os salários para os americanos, fortalecer a nossa segurança nacional, e restaurar o respeito por nossas leis", disse ele.

"Se formos guiados pelo bem-estar dos cidadãos americanos, então acredito que republicanos e democratas podem trabalhar juntos para atingir um resultado que tem escapado dos americanos por décadas", acrescentou.

No início do dia, Trump havia dito a jornalistas - nos bastidores - que ele estava aberto a fornecer um status normalizado para imigrantes indocumentados que não cometeram crimes, o que poderia representar uma reversão significativa sobre seus discursos passados. Ele não chegou a ir tão longe em seu discurso, mas deixou a porta aberta.

Esta porta poderia, evidentemente, ser fechada amanhã, e toda conversa sobre união desaparecer em uma enxurrada de tuítes.