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Onde estão mais de 1 milhão de vítimas 'perdidas' do Holocausto

Dois terços dos judeus europeus foram mortos pelos nazistas  - BBC
Dois terços dos judeus europeus foram mortos pelos nazistas Imagem: BBC

Raffi Berg

Da BBC News em Jerusalém

24/04/2017 09h16

Giselle Cycowicz, nascida Friedman, lembra de seu pai, Wolf, como um homem gentil e religioso. "Ele era um estudioso", ela diz. "Sempre tinha um livro aberto, estudando o Talmud (livro da lei judaica), mas também era um homem de negócios e cuidava da sua família".

Antes da guerra, os Friedman viviam uma vida feliz e sossegada em Khust, cidade com população grande de judeus na República Checa, próxima à fronteira com a Hungria. Mas tudo mudou em 1939, quando tropas húngaras pró-nazistas, e depois de alemães nazistas, invadiram a cidade e deportaram seus habitantes para Auschwitz.

Giselle viu seu pai pela última vez, "saudável e forte", horas depois que sua família chegou ao campo de extermínio de Birkenau, em Auschwitz. Wolf estava para ser enviado como força laboral a um outro local, mas um prisioneiro sob ordens não deixou que a filha se aproximasse dele.

"Aquela teria sido a minha chance de talvez beijá-lo pela última vez", disse Giselle, agora com 89 anos, com voz embargada de emoção.

Giselle, sua mãe e irmã sobreviveram, de alguma forma, aos cinco meses "no inferno" de Auschwitz. Ela depois soube que em outubro de 1944 "um homem esquelético" passou pelo acampamento das mulheres e deixou uma mensagem às que tivessem vindo de Khust.

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Em Auschwitz-Birkenau, mais de 900 mil judeus foram assassinados
Imagem: AFP

"Diga-lhes que 200 homens foram trazidos de volta das minas de carvão. Diga-lhes que amanhã não estaremos mais aqui". O homem era Wolf Friedman. Ele morreu, na câmara de gás, no dia seguinte.

Seis milhões de judeus foram assassinados por nazistas e simpatizantes durante a Segunda Guerra Mundial. Em muitos casos, as populações judaicas inteiras de cidades foram exterminadas, sem qualquer sobrevivente para ser testemunha - parte do plano nazista de aniquilar todos os judeus da Europa.

Desde 1954, o memorial do Holocausto de Israel, Yad Vashem ("Um memorial e um Nome"), tem trabalhado para recuperar os nomes de todas as vítimas; até agora conseguiu identificar cerca de 4,7 milhões delas.

"Cada nome é importante para nós", diz Alexander Avram, diretor do Salão de Nomes de Yad Vashem e da Central de Banco de Dados de Nomes das Vítimas do Holocausto.

"Cada novo nome que podemos incluir no banco de dados é uma vitória contra os nazistas, contra o propósito dos nazistas de varrer do mapa o povo judeu. Cada novo nome é uma pequena vitória contra o esquecimento", acrescenta.

A instituição, um amplo complexo de edifícios, árvores e jardins no monte Herzl, em Jerusalém, reúne detalhes sobre vítimas de duas formas: através de informações daqueles com conhecimento sobre sua morte, e por fontes de arquivos - que vão desde listas de deportação nazistas a anuários de escolas judaicas.

Giselle agora homenageia seu pai, quase 73 anos depois que foi morto, com uma pequena peça de um vasto quebra-cabeças. Ela recebe a ajuda de uma equipe treinada para registrar os detalhes de Wolf na Página de Testemunho, um formulário para documentar informações biográficas sobre o morto, tais como onde ele viveu antes da guerra, sua ocupação e os membros de sua família, e, se possível, uma fotografia.

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Na Europa Ocidental, os nazistas mantiveram registros das vítimas, tais como a lista de deportação de Frankfurt para Thereisenstadt
Imagem: BBC

"Apenas no final perguntamos sobre onde eles estavam durante a guerra e o que aconteceu com eles", explicou Cynthia Wroclawski, vice-diretora da Divisão de Arquivos de Yad Vashem. "Estamos interessados em ver uma pessoa como uma pessoa, e quem eles eram antes de se tornarem uma vítima".

É como se aquilo fosse uma lápide em papel, diz a instituição. Até agora, Yad Vashem coletou 2,7 milhões de Páginas de Testemunho.

Elas são guardadas em caixas pretas, cada uma contendo 300 páginas - num total de 9 mil caixas. São mantidas aclimatadas em prateleiras ao redor da instalação central - um cômodo de 30 metros de altura com o teto em forma de cúpula, onde são dispostas fotografias de homens, mulheres e crianças que foram assassinadas.

No Salão de Nomes, grupos de visitantes passam numa contemplação silenciosa. Há espaço nas prateleiras para mais de 11 mil caixas - ou seis milhões de nomes.

Com os últimos sobreviventes da guerra morrendo, Yad Vashem enfrenta uma corrida contra o tempo para prevenir que mais de um milhão de vítimas não identificadas desapareçam sem deixar rastro.

Isto fica claro com o número cada vez menor de Páginas de Testemunho que o local recebe - de cerca de 2 mil ao mês há cinco anos para 1,6 mil por mês atualmente.

O memorial está tentando aumentar a conscientização, especialmente entre os sobreviventes do Holocausto que ainda não se apresentaram. Por décadas, para muitos deles, a experiência de falar sobre o assunto era dolorosa demais.

"É algo muito comum, não apenas entre vítimas do Holocausto, mas para sobreviventes de traumas extremos e prolongados na infância", diz Martin Auerbach, diretor clínico do Amcha, um serviço de apoio a vítimas do Holocausto em Jerusalém.

Isto começou a mudar, ele diz, depois de 30 ou 40 anos, quando muitos sobreviventes começaram a falar sobre o aconteceu, não com seus filhos, mas com seu netos curiosos. Auerbach acredita que o Projeto de Recuperação de Nomes é uma parte importante no processo de "cura".

"Preencher esta página de informação, dizendo quem era seu pai, mãe, avô, sobrinhos e sobrinhas... Você não pode enterrar seus parentes, mas você pode se lembrar deles de uma maneira que irá celebrá-los para sempre, então isto é muito importante e também terapêutico para muitos sobreviventes".

Enquanto Yad Vashem tem feito grandes avanços em identificar as vítimas da Europa Central e Ocidental - cerca de 95% foram identificadas - poucos nomes foram revelados nas áreas ocupadas por nazistas no Leste Europeu, onde foram assassinados cerca de 4,5 milhões de judeus.

Isso porque, enquanto no oeste do continente houve um processo oficial e organizado de deportação, em todo o leste as comunidades foram aprisionadas e massacradas sem tais formalidades.

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Detalhes sobre a vida de milhões de vítimas são mantidos no Salão de Nomes de Yad Vashem
Imagem: BBC

Estima-se que 1,5 milhão de judeus foram mortos pelos Einsatzgruppen (esquadrões de extermínio itinerantes), no que ficou conhecido como o Holocausto a Tiros, depois que a Alemanha nazista invadiu a então União Soviética, em junho de 1941.

Por exemplo, dos 33 mil judeus fuzilados no barranco de Babi Yar, na Ucrânia, em setembro de 1941, no maior massacre do tipo, cerca de metade dos nomes ainda não foi identificada.

Outros judeus, em vez de serem mortos pelos Einsatzgruppen, morreram, sem rastros, de fome e exaustão em guetos e campos de trabalho; e outros ainda foram mortos em campos de extermínio próximos - com os corpos amontoados sem qualquer identificação.

O Yad Vashem vem trabalhando com organizações judaicas nesses países para tentar chegar aos sobreviventes remanescentes da antiga União Soviética, onde o Holocausto não é oficialmente lembrado e onde poucos sabem da existência do memorial.

É uma tarefa trabalhosa e às vezes complexa. O memorial abriga cerca de 205 milhões de documentos relacionados ao Holocausto, que são examinados meticulosamente em busca de novos nomes.

"Há muita documentação, e os nomes estão muito dispersos", diz Avram. "Nomes são mencionados numa carta aqui ou em outro relatório ali. Isto gera um trabalho muito intenso. Às vezes você tem que pesquisar milhares e milhares de páginas para recuperar apenas uma dezena de nomes".

A dificuldade aumenta pelo fato de as fontes estarem em 30 ou 40 línguas diferentes, a maioria escrita à mão, e ainda podem estar em alfabeto latim, hebraico ou cirílico. "Precisamos de uma equipe não apenas de linguistas, mas que tenha conhecimento de caligrafia também", diz Avram, que é um especialista em línguas.

Uma das principais lacunas ocorre com as crianças - 1,5 milhão foram mortas no Holocausto, mas apenas metade foi identificada.

"Esta é uma das coisas mais tristes", diz Avram. "Temos relatos em que pais são identificados, mas em que se fala de três ou quatro filhos sem identificação. Eram crianças pequenas e as pessoas simplesmente não se lembram delas".

O objetivo é que elas saiam das estatísticas anônimas e se tornem seres humanos de novo, como o menino de 7 anos Edward-Edik Tonkonogi, de Satanov, na Ucrânia. Um dos documentos do Yad Vashem era uma carta que escreveu em 1941 para seus pais, que viajavam pela Rússia com uma trupe de teatro: "Queridos mamãe e papai. Hoje choveu o dia inteiro. Estou brincando com Vitya e Gridsha. Um beijo e um abraço apertado para os dois. Edik."

Edik foi morto pelos nazistas quando eles invadiram Satanov naquele ano. Seu nome foi lembrado na Página de Testemunho por um parente.

E se, com o passar do tempo, a tarefa de encontrar nomes perdidos está se tornando mais difícil, em alguns aspectos está mais fácil. A disponibilidade de fontes é maior do que nunca, e os avanços na tecnologia tornam a tarefa de reunir e manipular as informações menos árdua. Entretanto, quanto menos nomes há para se descobrir, mais energia se requer para encontrá-los.

A era digital também trouxe várias ferramentas aos pesquisadores. O departamento de busca de nomes recentemente aderiu às mídias sociais, incluindo o Facebook, num esforço para chegar a sobreviventes. A campanha estimulou a criação de várias novas Páginas de Testemunho.

"Quando você lida com mídias sociais, você tem uma geração mais jovem que percebe que aqueles nomes não estão no nosso banco de dados e tentam descobrir informações de seus familiares", diz Sara Berkowitz, gerente do Projeto de Recuperação de Nomes.

Além disso, o crescimento do banco de nomes e o fato de estar disponível online desde 2004, trouxe outro resultado importante e de grande impacto na vida de indivíduos ou famílias inteiras: levou a reuniões emocionantes de sobreviventes que viveram suas vidas sem saber que seu familiar estava vivo.

No ano passado, as famílias de duas irmãs - que pensavam que a outra morrera no Holocausto - foram reunidas através da Página de Testemunho. Descobriu-se que as irmãs viveram o resto de suas vidas a 25 minutos de distância uma da outra no norte de Israel, mas faleceram sem nunca saber disso.

Em 2015, dois meio-irmãos foram reunidos através de uma busca no banco de dados; e em 2006, um irmão e uma irmã, um vivendo no Canadá e outro em Israel, foram reunidos 65 anos depois de se separarem na sua cidade natal na Romênia.

O projeto também revelou descobertas infelizes. A argentina Claudia de Levie, cujos pais fugiram da Alemanha na década de 1930, pensava ter perdido quatro ou cinco parentes no Holocausto. Uma busca no banco de dados para ajudar sua filha no dever de casa acabou mostrando que na verdade 180 membros de sua família tinham sido mortos.

Outras pesquisas na Página de Testemunho, entretanto, revelaram a existência de primos de seu marido, vivendo em Hamburgo, na Alemanha. As famílias agora se comunicam uma vez por semana pelo Skype.

Ironicamente, Cláudia também descobriu que, quando criança, viveu no mesmo bairro argentino que o arquiteto-chefe do Holocausto, Adolf Eichmann.

A importância da missão para recuperar nomes de vítimas recebeu reconhecimento international em 2013, quando a agência cultural da ONU, a Unesco, incluiu a coleção em seu registro de Memória do Mundo.

A agência enalteceu o projeto como algo "sem precedentes na história humana", ressaltando que ele deu origem a esforços similares em outros lugares afetados por genocídios, como Ruanda e Camboja.

Apesar dos milhões de nomes registrados até agora, ainda há um longo caminho a percorrer para recuperar todos os seis milhões de nomes - mas as pessoas por trás do projeto continuam determinadas.

"Eu pessoalmente espero que consigamos atingir o objetivo, que ao menos entre aqueles que morreram, não haverá uma pessoa que continue desconhecida. É nossa obrigação moral", diz Sara Berkowitz.