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O que são os coletivos chavistas, 'defensores da revolução' que invadiram a Assembleia venezuelana

Coletivos ouvidos pela BBC afirmam rechaçar a violência, embora não sigam essa regra quando se sentem atacados - BBC Mundo
Coletivos ouvidos pela BBC afirmam rechaçar a violência, embora não sigam essa regra quando se sentem atacados Imagem: BBC Mundo

Daniel García Marco

Da BBC Mundo, em Caracas

07/07/2017 16h06

O grafite no muro ilustra a ameaça. Trata-se da silhueta de um homem apontando um fuzil. Logo abaixo, a legenda: "Os coletivos vão tomar Caracas em defesa da revolução!".

Esse tipo de grafite é comum em paredes e edifícios de vários bairros de Caracas. E também nos muros brancos que cercam a Assembleia Nacional venezuelana, invadida na quarta-feira por um grupo de civis simpatizantes do presidente Nicolás Maduro.

Os líderes da oposição os chamam de "paramilitares". A procuradora-geral da República, Luisa Ortega, os define como "grupos armados civis fora da lei". Nas ruas, são conhecidos simplesmente como "coletivos". E frequentemente estão encapuzados.

Segundo o governo, muitos coletivos são grupos sociais que trabalham em projetos dentro de organizações criadas pelo ex-presidente Hugo Chávez nas comunidades.

Vários são pacíficos. E desempenham papel político associado a uma longa tradição de esquerda, o que os vincula a Chávez e à revolução bolivariana, agora liderada pelo presidente Nicolás Maduro.

Outros, no entanto, controlam com armas algumas áreas há anos, segundo denúncias de moradores e organizações não governamentais.

Grafite dos coletivos é comum no centro de Caracas e em alguns bairros, como Catia, no oeste da capital - BBC Mundo - BBC Mundo
Grafite dos coletivos é comum no centro de Caracas e em alguns bairros, como Catia, no oeste da capital
Imagem: BBC Mundo

No atual clima de confronto e conflito político entre governo e oposição, que se reflete nas ruas, os coletivos assumem papel de protagonistas.

No dia 28 de junho, por exemplo, manifestantes protestavam em frente a um hospital de Caracas, quando, de repente, ouviu-se um grito: "Coletivos!". Um grupo de homens encapuzados surgiu de moto causando pânico com sua presença.

Em fotos e vídeos postados nas redes sociais e publicados pela imprensa local nas últimas semanas, civis foram registrados com armas de fogo.

Embora seja difícil generalizar e muitos coletivos tenham se recusado a falar com a imprensa, a BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) conversou com líderes de vários grupos para descobrir o que pensam e como se articulam com as forças de segurança do Estado.

William Pacheco (direita) garante que seu coletivo é pacífico, mas que pode deixar de ser, caso a revolução esteja em perigo - BBC Mundo - BBC Mundo
William Pacheco (direita) garante que seu coletivo é pacífico, mas que pode deixar de ser, caso a revolução esteja em perigo
Imagem: BBC Mundo

Cultivo de sementes e segurança

Acompanhado por um grupo da Fundação Domingo Rebolledo, a reportagem da BBC subiu numa manhã de maio uma das ruas mais íngremes de La Vega, bairro no oeste de Caracas.

Eles mostraram o trabalho realizado na paróquia da Base de Missões Sinaí. As missões são os programas sociais criados por Chávez nas comunidades. E podem ser respaldadas na nova Constituição, que será redigida pela Assembleia Constituinte, a ser eleita em 30 de julho.

No local, há hortas urbanas. Projetos de cultivo de sementes e fertilizantes incentivam a produção local para reduzir a dependência de grandes produtores e redes de varejo.

A comunidade busca praticar a autogestão e seus líderes se declaram abertamente chavistas e simpatizantes da revolução.

A Fundação Domingo Rebolledo se define, com orgulho, como coletivo. É formada por 64 pessoas, incluindo 40 com motos, que também têm outras missões.

"Somos a garantia de segurança das pessoas, da pátria", diz Juan, nome fictício de um dos líderes, que prefere manter o anonimato por medo de represálias.

"Somos organizações criadas como medida de segurança para defender o modelo de governo, o povo e os quadros políticos", explica.

Nos últimos meses, esse trabalho tem sido reforçado diante dos protestos que tomaram as ruas contra o governo.

'Alerta'

Naquele sábado de maio, a oposição tinha convocado uma nova manifestação. Juan estava atento. E recebeu uma mensagem no celular de um "patriota colaborador".

"ALERTA. Recebi informação que os terroristas esquálidos estão planejando tomar a Redoma de la India", dizia o texto, que faz referência à praça principal do bairro de La Vega. "Terroristas esquálidos" é a forma pejorativa que eles usam para se referir aos adversários.

A mensagem continua. "Pelo sim, pelo não, temos de estar atentos e prontos para agir diante dos primeiro indícios; me parece que todos estamos decididos a sair e combater a contrarrevolução".

Nesse momento, Juan, que foi policial e faz parte do ODDI (Órgão da Defesa Integral do governo) é acionado. Ele responde ao ODDI de Caracas, dirigido pelo general Antonio Benavides Torres, ex-chefe da Guarda Nacional.

Alguns membros do órgão são acusados de matar manifestantes da oposição. A Procuradoria acusou Benavides recentemente por violações de direitos humanos.

As operações do ODDI, iniciadas após o alerta do "patriota colaborador", são articuladas com a ZODI (Zona Operacional da Defesa Integral) e a REDI (Região de Defesa Integral), ambas com estrutura militar a cargo do Ministério da Defesa.

Assim, é acionada o que o governo socialista chama de união civil-militar, estabelecida em lei desde 2014 e à qual têm recorrido nos últimos meses por acreditar que a oposição está promovendo um golpe de Estado e uma intervenção estrangeira.

Em abril, em plena onda de protestos, Maduro disse que ampliaria para meio milhão o número de integrantes da chamada Milícia Nacional Bolivariana, corpo de civis com treinamento militar. E afirmou que garantiria um fuzil para cada um.

As autoridades do governo citam os artigos 322 e 326 da Constituição, que falam sobre a responsabilidade do Estado e do povo venezuelano em defender o país.

Mas como isso se reflete na atuação do coletivo Domingo Rebolledo?

Já não é tão comum os coletivo exibirem armas de fogo como nesta foto de arquivo de 2008 - BBC Mundo - BBC Mundo
Já não é tão comum os coletivo exibirem armas de fogo como nesta foto de arquivo de 2008
Imagem: BBC Mundo

Roupas pretas e rostos cobertos

Juan garante que a própria polícia e a Guarda Nacional chamam o grupo para intimidar, assustar, dissolver as manifestações e tirar as barricadas da rua.

Por isso, se vestem de preto e cobrem o rosto.

A reportagem da BBC os acompanhou de moto em uma ronda na paróquia vizinha de El Paraiso, um dos principais centros de revolta contra o governo.

"Não vamos chegar reprimindo, atropelando nem agredindo, vamos apenas dispersar, para que não danifiquem a propriedade da nação", afirma Juan, assegurando que seu grupo é pacífico e o máximo que faz é deter manifestantes e entregá-los às autoridades.

Juan alega que não está armado, mas diz que poderia pegar uma arma emprestada com o tio.

"Não podemos apontar armas, porque a oposição está fortemente armada. Você imagina o que pode acontecer (...) Há armas, mas não as usamos. Nós queremos manter a paz", afirma Juan, que é funcionário público.

Um companheiro dele, formado em luta armada dos anos 70 e 80, vai além:

"Para este governo cair tem de haver uma guerra. Se houver, estamos prontos", diz, temeroso de que outro governo acabe com as "conquistas sociais" do chavismo.

Juan reconhece, no entanto, que há coletivos que não operam como o seu. E que contam com a impunidade.

"Os coletivos não são punidos. Podem agir e o governo os respeita porque são pessoas que vêm da polícia ou são policiais ativos. Têm contatos na polícia. Eles prendem, matam. E não pagam por isso. Nós não funcionamos assim", compara.

As imagens de quarta-feira da sede do Parlamento venezuelano, por exemplo, mostram que a Guarda Nacional não impediu a entrada dos manifestantes. Também não os dispersou para permitir a libertação dos deputados, que ficaram sete horas presos no prédio.

Mao, líder histórico da esquerda e da luta armada na Venezuela, dirige atualmente uma escola pública - BBC Mundo - BBC Mundo
Mao, líder histórico da esquerda e da luta armada na Venezuela, dirige atualmente uma escola pública
Imagem: BBC Mundo

'Pacífica, mas armada'

Chávez, que atribuía a suposta violência à burguesia venezuelana, sempre disse que a revolução era "pacífica, mas armada".

Essa declaração é lembrada por Lisandro López, conhecido como Mao, líder histórico da luta armada na Venezuela nos anos 70 e 80 e um dos pioneiros do Tupamaro, movimento revolucionário venezuelano que recebeu esse nome em homenagem ao grupo de guerrilha originado no Uruguai.

Mao também diz que promoveu a criação de coletivos na primeira metade da década passada.

"Era uma maneira de apoiar o governo nos bairros", diz Mao, que hoje tem 58 anos e dirige uma escola pública.

"Eles nascem como uma necessidade política", agrega, recordando-se dos anos imediatamente posteriores ao golpe fracassado contra Chávez em 2002.

Como seu apelido sugere, Lisandro López é maoísta e stalinista e vê o conflito atual na Venezuela como uma luta de classes, visão compartilhada por outros coletivos.

"Se eles [oposição] tomarem o poder, vamos ser eliminados. Sim, estamos armados e vamos enfrentá-los", admite.

Mas, segundo ele, não se encontram nessa fase no momento. A reportagem pergunta o que seria necessário para tal: "A ordem do presidente. Nosso único chefe é Maduro. Quem determina a ação é Maduro", responde Mao.

"Pegando leve"

Mao se dedica agora à formação política e ideológica.

Quem estava plenamente ativo na defesa da revolução era seu amigo Alberto "Chino" Carías, líder do Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA) do Peru na Venezuela. Carías conversou com a BBC em um escritório do prédio administrativo da Assembleia Nacional em 18 de maio, poucos dias antes de sua morte por causas naturais.

"Estamos lutando até as 9:00", contou Carías, que não considerava o MRTA como um coletivo, apesar de compartilhar os mesmos objetivos.

"O governo tem pegado leve com esses terroristas. Chávez já teria esmagado esse movimento", afirmou sobre os atos de violência que vincula à oposição.

23 de Enero

Tanto o Tupamaro, de Mao, como o MRTA, de Carías, nasceram no bairro 23 de Enero, reduto tradicional da esquerda, que defendeu Chávez no golpe de 2002, mas que, em 2015, deu vitória à oposição nas eleições legislativas.

Foi ali que se formou também o coletivo revolucionário Montaraz. A BBC fez uma visita a eles em um sábado de junho, para conversar com William Pacheco, um de seus líderes.

Ali, há uma horta onde os estudantes realizam seus projetos comunitários. O muro que cerca o local tem uma foto grande de Che Guevara e um cartaz das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

"O coletivo é um grupo de pessoas com objetivo político de apoiar o governo revolucionário", diz Pacheco, agregando que seu grupo é pacífico e se dedica a educação, cultura e esporte. Mas faz uma ressalva:

"Há outros que fazem escolta militar. Isso não significa que, no caso de uma situação em que queiram derrubar o governo, nós não vamos participar", explica.

Questionado como agiriam nesse caso e se usariam armas, ele responde: "Todos os cenários são possíveis. Se houver uma invasão ou um conflito com grupos paramilitares ou setores da direita, teremos que defender a revolução com armas". Ele se diz convencido de que há uma "guerra não convencional para derrubar a revolução".

A BBC levanta a hipótese de uma mudança de governo na Venezuela, em um processo eleitoral democrático.

"Teríamos de assumir essa derrota. Mas teríamos que ver qual seria a atitude em relação aos coletivos sociais. O império vai gerar outras situações de pressão: perseguirá líderes, aumentará o assassinato de dirigentes, e isso pode fazer com que a gente tenha que se defender por outros meios", diz, resgatando o discurso anti-imperialista reproduzido pelo governo.