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'Me sentia doente, não podia trabalhar mais': os trabalhadores em regime de escravidão moderna na Tailândia

Claudia Jardim - De Bangcoc (Tailândia) para a BBC Brasil

06/08/2017 16h30

Ko Aye* acorda assustada. Golpes insistentes na porta do quarto que divide com outros sete imigrantes de Mianmar indicam que é hora de trabalhar. São 3:30 da manhã. Seus companheiros deixam seus colchonetes no chão. Ko Aye tenta repetir a ação mecânica de todos os dias, mas não consegue. "Estava cansada, me sentia doente, não podia trabalhar mais", conta.

A jornada de trabalho na limpeza de camarões em Samut Sakhon, a uma hora da capital tailandesa Bangcoc, começava às 4h da manhã. O supervisor da fábrica, sub-contratada pela gigante companhia de alimentos CP Foods, foi buscá-la em seu quarto. "Ele disse que eu perderia o dia de trabalho e ameaçou descontar outras coisas do meu salário que eu nem entendia bem. Não tive escolha, levantei e fui (trabalhar)", conta.

Ao sair do quarto, a birmanesa foi agredida pelo guarda que vigiava os trabalhadores. "Ele me deu um soco na cara", conta. "Chorei e trabalhei o dia todo, doente, pensando no que fazer."

Ko Aye é uma das milhares de vítimas de tráfico humano que compõem a força de trabalho na gigantesca indústria pesqueira da Tailândia. Quarto maior exportador mundial de frutos do mar, o país gera R$ 18,71 bilhões anuais em exportações.

Uma potência erguida com base no trabalho escravo, de acordo com Kevin Bales, especialista em Escravidão Contemporânea na Universidade de Nottingham. Bales considera que o tráfico humano e a escravidão moderna são parte intrínseca da natureza dos grandes conglomerados pesqueiros em todo o mundo.

"É provável que, sem escravidão, a indústria pesqueira tailandesa não pudesse competir com os barcos bengaleses, vietnamitas, chineses e russos que utilizam a escravidão (na indústria pesqueira)", afirma Bales à BBC Brasil, autor de Disposable People: New Slavery in The Global Economy (Pessoas descartáveis: Nova Escravidão na Economia Global, em tradução livre).

Pobreza, a diferença de idiomas e de regras claras para legalização do trabalho imigrante tornam os trabalhadores imigrantes uma presa fácil para a rede de traficantes que operam no sudeste asiático.

Antes de imigrar à Tailândia, Ko Aye e sua família eram empregados em uma fazenda dedicada à produção de milho. "Ganhávamos apenas o suficiente para comer naquele mesmo dia", recorda. A ideia de que a vida poderia mudar veio quando uma tia disse que um "coiote" poderia lhe conseguir um trabalho na Tailândia.

A família não demorou para decidir. Imigrar à Tailândia é a versão do "sonho americano" para o sudeste asiático, especialmente para os vizinhos empobrecidos de Mianmar, Camboja e Laos.

Ko Aye tinha 16 anos quando cruzou a fronteira com a ajuda do coiote e do guarda fronteiriço.

Na fábrica, Ko Aye era proibida de sair e tampouco se arriscava. Nunca teve seus documentos em mãos. "Não conhecia ninguém do lado de fora, tinha dívidas a pagar. Comia pouco, mas mesmo assim não dava, gastava tudo em comida", afirma.

"A escravidão por dívida, ilegal sob o direito internacional, é utilizada por traficantes para mantê-los cativos", afirma à BBC Brasil Lisa Rende Taylor, diretora-executiva do Issara Institute, uma das referências no país no combate ao trabalho escravo.

Estima-se que 425,5 mil pessoas estão em situação de "escravidão moderna" no país, de acordo com a The Global Slavery Index.

Traficantes presos

Na semana passada, em um julgamento inédito, 62 pessoas foram condenadas pela Justiça tailandesa por participar de uma rede de tráfico humano. Entre os condenados, está um general do Exército e políticos locais.

O líder da junta militar e primeiro-ministro Prayuth Chan-ocha pediu à população para não rotular os militares como criminosos. "Há muitas pessoas na rede de tráfico humano. Não agrupem (a postura de) todos os soldados a partir de um", acrescentou.

Esta rede de traficantes foi desarticulada em 2015, quando centenas de imigrantes foram encontrados enjaulados na selva tailandesa- grande parte deles pertencentes à minoria Rohingya, de Mianmar. Dali, os imigrantes seriam vendidos diretamente a barcos pesqueiros. Cerca de 500 corpos foram encontrados em valas comuns no mesmo local onde a quadrilha foi desbaratada.

A junta militar que governa o país diz ter ordenado o aumento nos controles sobre os barcos pesqueiros e o registro de imigrantes e afirmam ter fortalecido a vigilância nas fronteiras. Até o fechamento desta reportagem, o governo tailandês não havia respondido ao pedido de entrevista à BBC Brasil para explicar a dimensão dessas ações.

Na opinião de Lisa Rende Taylor, as mudanças anunciadas pela junta militar não trouxeram impactos significativos. "Ainda estamos vendo o tráfico dentro do recrutamento de mão-de-obra, a escravidão por dívidas, trabalhadores sem documentos sendo forçados a trabalhar turnos duplos por pouco ou nenhum salário", afirma.

No mês passado, o Departamento de Estado dos EUA manteve a Tailândia na lista de vigilância de nível 2 em seu Relatório Anual sobre Tráfico de Pessoas (TIP), por considerar que o país "tem demonstrado esforços" em coibir o crime, porém, não demonstrou resultados satisfatórios. A Tailândia é considerada um país de fonte, trânsito e destino de tráfico humano.

O tráfico humano movimenta US$32 bilhões anualmente, atrás apenas do tráfico de drogas na escala de crimes transnacionais, segundo a Agência para Drogas e Crimes das Nações Unidas (UNDCO).

A Tailândia ainda enfrenta o risco de ter suas exportações de frutos do mar proibidas na Europa. Em 2015, a UE impôs uma advertência que obriga o país a combater a pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (IUU nas siglas em inglês). Parte da regulamentação se refere à mão-de-obra.

As exportações de frutos do mar da Tailândia para o Brasil cresceram 44% neste ano, com um acumulado até junho de US$ 266,6 mil, de acordo com o Ministério de Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Segundo informações da embaixada tailandesa em Brasília, o camarão ainda é vetado devido às altas taxas para a importação. No entanto, outros peixes provenientes da mesma cadeia de exploração podem ser encontrados nos supermercados brasileiros.

Para Matthew Smith, diretor executivo da ONG Fortify Rights - que atua contra o trabalho escravo no sudeste asiático - a economia tailandesa colocará em risco sua reputação se não "limpar"o setor. "A Tailândia está vendo sua reputação ser afetada. Essa é parte da razão por que o regime está pensando no problema. Eles sabem que se não limparem o setor poderão entrar em colapso porque começarão a perder contratos e investimentos", afirmou Smith à BBC Brasil. "Os distribuidores começarão a pensar duas vezes antes de importar produtos da Tailândia", acrescentou.

Resgate

No mesmo ano em que imigrantes foram encontrados em jaulas, Ko Aye também foi resgatada. Um imigrante fugiu do galpão em que ela trabalhava e pediu ajuda à uma ONG local. As autoridades tailandesas foram chamadas e o galpão foi inspecionado. "(As autoridades) disseram que podíamos sair, que não precisávamos continuar ali, trabalhando. Fui chamar Ko Aye mas ela se recusava, ela tinha medo", relata, emocionada, Su Su*, namorada de Ko Yae. Elas se conheceram na fábrica.

O Issara Institute incluiu Ko Yae e Su Su no programa de resgate e de transferência de dinheiro incondicional para vítimas de tráfico para que pudessem sobreviver enquanto conseguiam um novo trabalho. Receberam durante três meses um pouco mais de um salário mínimo e assistência jurídica.

Apesar da ação das autoridades no resgate, as imigrantes não foram reconhecidas pelo governo como vítimas de tráfico humano. No entanto, a corte trabalhista aceitou julgar o processo no qual elas reivindicam o pagamento de dois anos de salários atrasados.

"Tenho esperança de que vamos recuperar nosso salário e poderemos voltar para casa (Mianmar), abrir um negocinho e viver de novo", diz Ko Aye. O futuro das imigrantes será definido em dois meses.

Enquanto espera o julgamento, Ko Yae* continua limpando camarões em um outro galpão em Samut Sakhon, como tem feito nos últimos seis anos.

Trabalha entre 10 h e 12 horas diárias, por um salário mínimo mensal equivalente a R$ 700. A renda lhe garante alimentar-se, pagar o aluguel do quarto em que dorme e ter um dia de folga por semana. Apesar de ganhar pouco e trabalhar muito, a jovem comemora poder caminhar "livre" fora da fábrica nas horas livres de trabalho. Ela e a namorada - que trabalha no mesmo galpão- ajustam o orçamento para economizarem, juntas, R$180 ao mês. "Quase sempre conseguimos", diz. "Queremos recomeçar nossa vida (em Mianmar) e esquecer tudo isso."

*O nome real das vítimas foram modificados para proteção de suas identidades.