Topo

Como protesto de jogador de futebol americano contra racismo se transformou em ato anti-Trump

Colin Kaepernick (centro), então quaterback do San Francisco 49ers, começou seu protesto durante a pré-temporada de futebol americano de 2016  - Thearon W. Henderson/ Getty Images/ AFP
Colin Kaepernick (centro), então quaterback do San Francisco 49ers, começou seu protesto durante a pré-temporada de futebol americano de 2016 Imagem: Thearon W. Henderson/ Getty Images/ AFP

Beatriz Díez

Da BBC Mundo, Los Angeles

27/09/2017 13h26

Atletas da NFL, principal liga de futebol americano dos Estados Unidos, se ajoelharam durante a execução do hino nacional na rodada deste fim de semana para protestar.

Os jogadores repetiram o gesto de Colin Kaepernick, então quarterback do San Francisco 49ers, que na pré-temporada do ano passado se recusou a levantar durante o hino em repúdio ao "tratamento que os negros recebiam nos EUA", inspirando outros atletas da liga.

A diferença é que, desta vez, o alvo das manifestações é o presidente Donald Trump. E os protestos foram além dos campos de futebol americano.

Na última sexta-feira, Trump criticou os atletas que fazem manifestações durante a execução do hino, sugerindo boicote do público aos jogos da NFL e a demissão dos jogadores.

"Se os fãs da NFL se recusassem a ir às partidas até que os jogadores deixassem de faltar com o respeito à nossa bandeira e ao nosso país, veríamos uma mudança rápida. Que sejam demitidos ou suspensos", afirmou o presidente no Twitter.

Atletas desafiam Trump

A declaração do presidente gerou mais manifestações. Centenas de jogadores de futebol americano se ajoelharam, sentaram ou simplesmente não participaram da cerimônia de execução do hino na rodada deste fim de semana.

Atletas do Seattle Seahawks e do Tennessee Titans ficaram no vestiário durante o hino, horas após o Pittsburgh Steelers fazer o mesmo em Chicago (exceto Alejandro Villanueva, veterano que serviu no Afeganistão). Os jogadores do Chicago Bears se posicionaram à margem do campo com os braços cruzados, assim como o quarterback Tom Brady, estrela do New England Patriots, e seus companheiros de equipe.

O intérprete do hino na partida Seahawks x Titans ajoelhou-se no fim da performance, assim como o cantor do hino no jogo Lions x Falcons, que ainda levantou o punho.

Roger Goodell, comissário da NFL, divulgou uma nota dizendo que "comentários separatistas como esse (de Trump) demonstram falta de respeito".

Outros esportes

As manifestações também ecoaram em outros esportes. Na noite de sábado, Bruce Maxwell se tornou o primeiro jogador da liga de beisebol americana (MLB) a se ajoelhar durante o hino nacional.

Também no sábado, Trump retirou o convite para o Golden State Warriors, atual campeão da liga americana de basquete (NBA), visitar a Casa Branca, depois que Stephen Curry, um dos astros da equipe, dizer que não queria participar da solenidade em uma forma de protesto às declarações do presidente.

"Ir à Casa Branca é considerado uma grande honra para uma equipe. Stephen Curry está hesitando, então o convite está retirado!", disse o presidente no Twitter.

O tricampeão LeBron James, que joga pelo Cleveland Cavaliers, respondeu: "Ir para a Casa Branca era uma honra até você aparecer".

Lenda da NBA, Michael Jordan também entrou na discussão: "Aqueles que exercem o direito de se expressar pacificamente não devem ser demonizados ou desprezados", disse ele, atual dono dos Charlotte Hornets.

Músicos como Stevie Wonder, John Legend e Pharrell Williams também demonstraram solidariedade aos atletas e aderiram aos protestos, fazendo manifestações durante seus respectivos shows no fim de semana.

"Esta noite, eu me ajoelho pela América", disse Stevie Wonder, ficando de joelhos no palco.

Como tudo começou

O jogador Colin Kaepernick, atualmente sem time, sentou pela primeira vez durante a execução do hino nacional na pré-temporada de 2016.

"Eu não vou levantar para demonstrar orgulho pela bandeira de um país que oprime pessoas negras e pessoas de cor", afirmou na ocasião.

"Para mim, isso é maior do que o futebol e seria egoísta da minha parte ver de outra forma."

Trump negou, no entanto, que seu recentes comentários sobre os protestos tenham a ver com a questão racial.

"A questão de se ajoelhar não tem nada a ver com raça", disse o republicano.

"É sobre o respeito ao nosso país, à bandeira e ao hino nacional. A NFL deve respeitar isso!", acrescentou.

Letra polêmica

O protesto de Kaepernick no ano passado gerou uma série de debates sobre a letra do hino.

Enquanto alguns defendem que o conteúdo é racista e justifica a escravidão, outros dizem que esta é uma leitura exagerada.

Mas o que diz exatamente o hino?

A letra de The Star-Spangled Banner ("A Bandeira Estrelada") corresponde ao poema The Defence of Fort McHenry ("A Defesa do Forte McHenry"), escrito em 1814 por Francis Scott Key, que testemunhou o bombardeio britânico ao Forte McHenry, em Baltimore, durante a Guerra de 1812.

Em 1931, a obra foi oficialmente designada como o hino nacional dos Estados Unidos.

A canção é conhecida principalmente por sua primeira parte, que geralmente é a única a ser cantada. No entanto, o poema tem quatro fragmentos.

O terceiro é o mais polêmico e se tornou pivô da discussão. Nele consta o seguinte verso: "Nenhum refúgio poderia salvar o mercenário e o escravo do terror da fuga, ou da escuridão do sepulcro".

A frase é geralmente interpretada como uma celebração das mortes de escravos que lutaram no lado britânico durante a guerra.

O exército britânico ofereceu liberdade aos escravos que aderissem à sua causa. Aqueles que concordaram em se juntar a eles formaram o corpo de Marines Coloniais.

'Canção racista e escravista'

Em artigo publicado na revista The Root, o professor de Ciência Política Jason Johnson define o hino como "uma das canções mais racistas, a favor da escravidão e contra os negros".

Para Johnson, Key era um aristocrata que não se opunha à escravidão e considerava os negros como seres inferiores.

Outros acrescentam que é uma canção militarista, talvez apropriada para o século 19 e para tempos de guerra, mas questionam que seja adequada para os dias de hoje.

Há quem diga que o fato desta parte não ser recitada atualmente confirma que se trata de um hino racista e discriminatório.

Por outro lado, há vozes que defendem o hino e argumentam que as críticas que estão sendo feitas são exageradas e fora do contexto.

O musicólogo Mark Clague, professor da Universidade de Michigan, acha o debate positivo, mas não compartilha da visão de acadêmicos como Johnson.

"Se há pessoas que não sentem que a canção os representa, devemos prestar atenção. Mas se rechaçamos a música como racista ou declararmos que não é nosso hino, não resolveremos o problema", disse ao jornal americano The New York Times.

Na sua opinião, o poema não glorifica nem celebra a escravidão: foi escrito contra o inimigo britânico na Guerra de 1812.

"Os mercenários e escravos a quem Key faz referência inclui negros e brancos", avalia Clague, acrescentando que "para Key, os mercenários eram perversos e os marines coloniais eram traidores que ameaçavam desencadear uma insurreição nacional".

Os defensores dessa posição dizem que essa parte do hino deixou de ser cantada não devido ao racismo, mas em sinal de respeito perante o Reino Unido, que se tornou aliado dos EUA na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).