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O drama ignorado de Kavumu, o povoado onde 50 meninas foram estupradas por 3 anos em rituais de magia

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Imagem: Reprodução

Lucía Blasco - BBC Mundo

BBC Mundo

18/11/2017 18h23

Poucas pessoas no mundo devem saber onde fica Kavumu. Mas na República Democrática do Congo, o local ficou muito conhecido: hoje, é chamado de o "fenômeno Kamuvu". Na aldeia, entre 2013 e 2016, ocorreu uma onda de estupros de meninas que marcou o país africano.

Recentemente o caso chegou aos tribunais. Essa é a primeira vez no país que houve uma prisão em massa por conta de estupros.

Uma milícia de 18 homens - supostamente liderada por Frederic Batumike, um deputado de província - é acusada de ter violentado dezenas de garotas para seguir rituais de magia. Uma crença popular local diz que o sangue de meninas virgens dá poder contra tiros e melhora a saúde.

"Garotas entre 18 meses a 11 anos eram raptadas de suas casas durante a noite", conta Lauren Wolfe à BBC - ela foi a primeira jornalista a divulgar os casos, em agosto do ano passado.

"Havia pequenas cabanas com até 11 crianças, além dos pais. Todos dormiam. Então uma menina era escolhida (pela milícia) e levada ao campo, onde era violentada por um grupo de homens. Depois, eles a abandonavam à própria sorte", conta Wolfe.

"Quando a família acordava, não sabia onde a menina estava. Os pais encontravam a filha, e sempre ocorria o mesmo: a garota estava muito machucada e abandonada no campo", diz Wolfe.

Foram três anos de silêncio sobre os casos de estupro em Kavumu, sem qualquer busca pelos culpados.

'Destroçadas para sempre'

No dia 9 de novembro, começaram os julgamentos dos acusados pelos crimes - a sessão deve se prolongar até o dia 26 deste mês.

"O julgamento é um sinal importante para a luta contra a impunidade", disse à agência Reuters Jean Chrysostome Kijana, ativista e representante das vítimas.

"Durante muito tempo, esse tema (estupros no Congo) tem sido deixado de lado, mas as vidas dessas meninas foram destroçadas para sempre", diz Lorena Aguirre, chefe da missão de uma ONG internacional que se encontrava precisamente em Kavumu quando os casos começaram a ocorrer.

Aguirre, psicóloga espanhola que vive no Congo há 11 anos, atendeu às vítimas.

"Meninas muito pequenas começaram a ser estupradas. Havia outros casos de estupros de mulheres e crianças durante a guerra, mas nunca houve nada parecido com que o ocorreu em Kavumu", diz Aguirre. "Praticamente toda semana aparecia uma menina muito pequena que havia sido violentada. Estavam sempre cobertas de sangue".

A psicóloga diz que o número de vítimas pode ser maior, pois muitas garotas não foram levadas a tratamento e, consequentemente, não tiveram seus casos registrados. Ela assinala, assim como a jornalista Lauren Wolfe, que o número de vítimas oficiais é de pelo menos 50 crianças.

"A menor criança que atendemos tinha um ano e meio. Havia muitas de dois e três anos, mas a maioria tinha seis. A família me pedia ajuda como psicóloga, mas nós também as levávamos ao hospital", conta Aguirre.

Sua organização deu assistência médica e terapêutica, além de ajudar em exames posteriores e melhorias na educação das meninas. O problema, diz Aguirre, é que muitas vezes a ONG não podia operar em áreas destruídas pela guerra que assola o país há 20 anos -esse fator dificultou a recuperação das garotas. "Essas meninas foram escolhidas de propósito", afirma a ativista.

"Eram filhas de famílias desfavorecidas, abandonadas e isoladas do restante da população. As famílias mais pobres ganhavam 1.500 francos congoleses (R$ 3,20) por mês para manter dez filhos", diz Aguirre.

Os pais não percebiam quando uma de suas filhas desaparecia?

Aguirre diz que, em alguns casos, as mães das crianças não estavam nas cabanas com os filhos porque trabalhavam à noite como prostitutas. Além disso, as cabanas são feitas de barro, o que permitia aos agressores raptar as meninas facilmente, apenas fazendo buracos nas paredes.

"Kavumu é um povoado muito pobre, um lugar caótico com uma concentração humana enorme", diz a psicóloga.

O 'diamante vermelho'

Segundo a jornalista Lauren Wolfe, os estupradores também usavam substâncias anestésicas para facilitar os sequestros. "Quando regressei ao Congo para investigar a história, no ano passado, descobri que havia uma plantação envolvida. Perguntei a mim mesma: será possível que esses homens a quem considero responsáveis pelos estupros usavam algum tipo erva anestésica? A resposta é sim", diz.

Segundo ela, a milícia ocupava ilegalmente uma plantação "extremamente fértil" que pertencera a um botânico alemão assassinado em 2012.

"Os agressores formavam uma milícia criada por um membro do Parlamento. Eles tomaram controle dessa plantação. Ganharam muito dinheiro alugando parte dessa terra e gerenciando o que crescia nela. Além disso, eles estavam enfrentando o governo", explica Wolfe.

Mas o que a magia tem a ver com os estupros?

Segundo Wolfe, os moradores da aldeia acreditam que os estupradores usaram um "pó mágico" para adormecer as pessoas. "A magia e a bruxaria fazem parte da cultura local", diz a jornalista.

A magia também seria uma possível explicação para os sequestros. "Tudo tem a ver com um que eles chamam de 'o diamante vermelho'", explica Aguirre.

"Há uma crença popular no Congo de que o sangue de meninas virgens imuniza o homem contra tiros, dá trabalho e saúde, além de livrar o corpo do vírus HIV", diz a psicologia, há 11 anos no país. "O sangue das meninas também ajudaria nos enfrentamentos contra o governo", acrescenta a repórter Wolfe.

Os processos criminais terão de apresentar indícios suficientes para comprovar que os acusados são culpados. O deputado Frederic Batumike é acusado de crimes contra a humanidade, assassinato, posse ilegal de armas, além de ter criado uma milícia pessoal.

A República Democrática do Congo vive conflitos armados há 20 anos - parte do país é controlada por milícias.

Margot Wallstrom, a primeira representante especial da ONU contra violência sexual em conflitos, diz que o Congo é "a capital mundial dos estupros".