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O 'olhar vazio' da cólera que chocou um médico brasileiro no Iêmen

Médico Tiago Valim esteve no Iêmen por três meses, entre abril e agosto - Arquivo pessoal
Médico Tiago Valim esteve no Iêmen por três meses, entre abril e agosto Imagem: Arquivo pessoal

Camilla Veras Mota - @cavmota - Da BBC Brasil em São Paulo

Da BBC Brasil em São Paulo

19/11/2017 17h24

O médico brasileiro Tiago Valim nunca achou que veria de perto o olhar vazio, exausto pela desidratação aguda, que marca o rosto de quem foi infectado pela cólera até embarcar para o Iêmen, em abril. No Brasil, a última epidemia da doença, que se espalha em ambientes em que faltam saneamento básico e tratamento da água, aconteceu no início dos anos 1990, quando ele era ainda criança.

O hospital para onde o mineiro de 31 anos foi enviado como expatriado, na zona rural da província de Ibb, foi assumido pela organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) em fevereiro de 2016, inicialmente, para receber as vítimas da violenta linha de batalha que fica a aproximadamente 50 quilômetros, em Taiz.

Quando ele chegou, contudo, os casos de pacientes feridos em ataques aéreos ou por minas terrestres já eram minoria. Os traumas era decorrentes, em sua maioria, de acidentes de trânsito e de brigas de rua. A rotina eram os quadros graves de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, problemas causados pela desnutrição, que atinge boa parte da população, os bebês prematuros e pouco tempo depois, a cólera.

"A maior parte dos casos é resultado da falência do Estado, do sistema de saúde pública. Também é uma consequência da guerra, mas indireta", ele ressalta.

O Iêmen vive um conflito civil há dois anos e meio. Forças pró-governo lideradas pelo presidente Abd Rabbuh al-Hadi disputam o poder com os insurgentes houthis, aliados de Ali Abdullah Saleh, que presidiu o país por 33 anos até ser pressionado a renunciar durante a onda de protestos da Primavera Árabe, entre 2011 e 2012. Al-Hadi era vice de Saleh.

Cerca de 75% da população de 27,4 milhões precisa de ajuda humanitária ou de proteção, estima o escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários.

Entre maio e agosto, o país passou por um de seus piores surtos de cólera, que matou mais de 2 mil pessoas e infectou outras 575 mil, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). No início de novembro, há cerca de duas semanas, a crise em que a pequena nação do Oriente Médio está mergulhada ganhou mais um capítulo dramático.

A coalizão liderada pela Arábia Saudita, que apoia a ofensiva do governo, vem impedindo o acesso de organizações humanitárias e a entrada de mantimentos, o que pode dar origem à "maior crise de fome que o mundo já viu em décadas", na definição do subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, Mark Lowcock.

80 casos por dia

O clima seco que recebeu Valim em Ibb, no sudoeste do país, em algumas semanas deu lugar a um tempo chuvoso, que trouxe de volta nos iemenitas que o médico supervisionava a lembrança do pequeno surto de cólera do ano anterior.

"As pessoas começaram a tomar água de qualquer lugar", diz ele à BBC Brasil, tentando dar medida ao senso de urgência com que a equipe, em uma semana, reergueu o Centro de Tratamento de Cólera do MSF. Os casos começaram a aparecer e a se multiplicar, chegando a 80 por dia.

Transmitida por uma bactéria, a infecção é altamente contagiosa e pode matar em menos de 24 horas. Causa diarreia, vômitos, dores abdominais e a perda de grande quantidade de líquido.

O tratamento, contudo, é relativamente simples. A maioria dos casos responde com sucesso à terapia de reidratação oral, uma solução simples de açúcar, sal e água.

Alguns pacientes, contudo, não conseguiam chegar a tempo ao CTC.

"Eu tinha recebido treinamento (para enfrentar eventuais surtos da infecção), mas não imaginava que aquilo fosse acontecer enquanto estivesse lá. O rosto de quem está doente, característico da desidratação aguda, é impressionante".

Sem geladeira para a insulina

Os portadores de doenças crônicas também apareciam com certa frequência, apesar de o médico, como supervisor do pronto socorro, estar encarregado das emergências.

Isso porque, diante das condições precárias de sobrevivência da maior parte da população, são comuns as complicações decorrentes do tratamento inadequado de disfunções como diabetes e hipertensão.

Um caso marcante foi o de uma paciente com diabetes internada quatro vezes em dois meses - duas enquanto ele esteve lá - com pneumonia e insuficiência cardíaca. Ela ía ao hospital com a irmã, com quem vivia desde que perdeu o irmão e o marido e que teve de migrar do norte do país.

Da última vez em que lhe deu alta, Valim advertiu à moça, que tinha por volta de 35 anos, sobre a importância de tomar regularmente insulina para controlar a doença e evitar as complicações.

A resposta foi desconcertante: mesmo que tivesse condições de pagar pelo acompanhamento com um especialista e pelo medicamento - o que não era o caso -, não havia lugar para guardar a insulina, que precisa ser mantida na geladeira. Ela vivia sem energia elétrica havia dois anos.

"A gente tenta se colocar no lugar do paciente, mas uma situação como essas é impossível imaginar".

Bebês desnutridos

A crise alimentar no Iêmen já era grave mesmo antes do bloqueio das últimas semanas. Os recém-nascidos que chegavam ao hospital na zona rural de Ibb pesavam em média entre 1,5 kg e 2,5 kg, muito abaixo do padrão brasileiro, em que o peso normal de uma criança com idade gestacional de 40 semanas começa em 2,5 kg, conforme levantamento feito por pesquisadores da UFRJ e da UFF e divulgado em 2011.

A grande maioria dos bebês que o médico brasileiro atendeu não era de prematuros, mas filhos de mães desnutridas, que não fizeram qualquer tipo de acompanhamento pré-natal e que deram à luz em casa.

A situação não era melhor entre os maiores, com idade de até cinco anos, nos quais o teste da circunferência do braço, quase sempre muito fina, indicava que o peso estava abaixo do normal.

De al-Qaidah a Kilo

Pouco antes de partir para o Iêmen, Valim descobriu que seu destino não estava no mapa. Os aplicativos de geolocalização desconhecem Kilo, o nome "neutro" que a cidade conhecida como al-Qaidah ganhou do MSF.

O nome não tem relação com o do grupo extremista criado por Osama Bin Laden, cuja pronúncia é semelhante, mas a organização prefere não usá-lo para não haver confusão.

O hospital rural ficava no distrito de Thi As Sufal, no sudoeste do país. É um dos 13 em que o MSF atua no Iêmen, assumido em parte pela organização por estar em péssimo estado.

A equipe local somava 180 profissionais. Valim supervisionava oito iemenitas no pronto socorro.

Ele morava no prédio anexo, onde os cerca de 15 expatriados - africanos, europeus, um japonês, um mexicano - ficavam alojados, e dificilmente deixava o complexo, por questões de segurança.

"A clausura é uma das piores dificuldades. A gente não tinha vida social".

A relação com os locais e com o islamismo, a religião predominante no país, foi construída aos poucos. No começo, o brasileiro estranhava, por exemplo, dar ordens às funcionárias de burca, que só tinham os olhos à mostra. "Era difícil interpretar as reações, entender que tipo de comentário, de brincadeira a gente podia fazer".

Com o passar das semanas, contudo, a convivência se mostrou leve e as diferenças ensinaram que a maneira como as pessoas enxergam as doenças e a morte não é universal, mas uma construção cultural.

Das poucas vezes em que se deslocou dentro do país, ele lembra da sensação de desordem, da poeira, da sujeira, do trânsito intenso e das buzinas.

Durante a missão, Valim passou cinco dias no Djibouti, país africano onde parte dos voluntários no Iêmen, onde o MSF tem uma de suas maiores operações, passa o período de folga previsto. Um tempo para descansar e para trazer de volta a sensação de normalidade que a guerra tira. "O que eu mais fazia lá era caminhar pela rua", ele recorda.