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Desertora do Exército norte-coreano relata rotina de estupros, higiene precária e menstruação interrompida

Kim Kwang Hyon/AP
Imagem: Kim Kwang Hyon/AP

Megha Mohan - BBC

21/11/2017 16h22

Uma ex-soldado da Coreia do Norte diz que ser mulher no quarto maior exército do mundo era tão desgastante para o organismo que ela logo parou de menstruar. E estupro, afirma, era uma realidade para muitas das companheiras com quem serviu.

Por quase 10 anos, Lee So Yeon dormiu na parte de baixo do beliche, em uma sala que dividia com mais de duas dúzias de mulheres. Cada uma delas possuía um gaveteiro para guardar seus uniformes. Em cima do móvel, cada uma mantinha duas fotografias emolduradas. Uma era do fundador da Coréia do Norte, Kim Il-sung. A segunda, do seu agora falecido sucessor, Kim Jong-il.

Estima-se que cerca de 40% das mulheres norte-coreanas com idades entre 18 e 25 anos estejam nas forças armadas. Aproximadamente 70% dos desertores da Coreia do Norte são do sexo feminino. Mais da metade tem entre 20 e 30 anos, em parte porque é mais fácil para pessoas jovens nadar em rios e resistir a jornadas difíceis. Lee partiu há uma década, mas mantém o cheiro daquele lugar vivo na memória.

"Nós suávamos bastante. O colchão em que dormíamos era feito de cascas de arroz e não de algodão. Então, todo o odor do corpo penetrava no colchão. Todo o cheiro de suor se mantinha ali. Não é agradável".

Uma das razões para isso eram as condições precárias das instalações de lavanderia e banheiro.

"Uma das coisas mais difíceis era não poder tomar banho adequadamente", diz Lee So Yeon.

"Porque não havia água quente. Com uma mangueira, eles captavam água de um riacho nas montanhas. Às vezes, essa água chegava com sapos e cobras".

Lee So Yeon, que serviu como sargento em uma unidade de sinalização perto da fronteira sul-coreana, deixou o exército aos 28 anos. Em 2008, ela decidiu fugir para a Coréia do Sul. Na primeira tentativa, ela foi capturada na fronteira com a China e enviada para um campo de detenção por um ano.

Em sua segunda tentativa, pouco depois de sair da prisão, ela nadou o rio Tumen e atravessou a fronteira com a China. Lá, na fronteira, ela se encontrou com um agente que providenciou para que passasse da China para a Coréia do Sul.

Patriotismo e necessidade de garantir uma refeição por dia

Filha de um professor universitário, So Yeon, agora com 41 anos, cresceu no norte do país. Muitos homens de sua família haviam se alistado antes, e, quando a fome devastou a Coreia do Norte nos anos 1990, ela voluntariou-se - movida pelo pensamento de ter ao menos uma refeição garantida por dia. Milhares de outras jovens mulheres fizeram o mesmo.

"A fome resultou em um período particularmente vunerável para as mulheres", diz Jieun Baek, autor de North Korea's Hidden Revolution (A Revolução Escondida da Coreia do Norte, em tradução livre). "Mais mulheres tiveram que ingressar na força de trabalho e ficaram sujeitas a maus-tratos, especialmente a assédio e violência sexual".

Assim como Jieun Baek, Juliette Morillot, autora de Coreia do Norte em 100 perguntas, originalmente publicado em francês, acredita que o depoimento de Lee So Yeon está de acordo com outros relatos que ouviram, mas alertam que desertores - aqueles que abandonam o serviço militar sem autorização - têm de ser tratados com cautela.

"Há uma alta demanda por informações da Coreia do Norte", diz Baek. "De algum modo, essas pessoas são quase que incentivadas a contar histórias exageradas à mídia, especialmente se são pagas para isso. Muitos desertores que não querem estar na mídia são muito críticos dos 'desertores de carreira'. Vale a pena ter isso em mente".

Já informações de fontes oficiais do governo norte-coreano que contradizem os depoimentos podem ser mera propaganda de regime.

Alimentação precária e problemas de saúde

No início, entusiasmada por um certo patriotismo, ela, então com 17 anos, aproveitou a vida no Exército. Ficou impressionada com um secador de cabelo que recebeu, embora a eletricidade irregular significasse que usaria pouco o acessório.

A rotina diária de homens e mulheres era parecida. Mulheres tendiam a ter, no entanto, um regime de treinos físicos ligeiramente menor - e eram obrigadas a realizar tarefas diárias como limpar e cozinhar, o que soldados homens eram dispensados de fazer.

"A Coreia do Norte é uma sociedade tradicionalmente dominada por homens e papeis de gênero permanecem", diz Morillot.

O treinamento duro e as refeições limitadas e de baixa qualidade cobraram seu preço nos corpos de Lee So Yeon e de suas colegas recrutas.

"Depois de seis meses a um ano de serviço, não menstruávamos mais devido à desnutrição e ao ambiente estressante", diz ela.

"As mulheres soldado diziam estar felizes por não estarem menstruando. Elas afirmavam que estavam felizes porque a situação era tão ruim que se também menstruassem teria sido pior".

So Yeon diz que, embora o governo admita gastar 15% de seu orçamento com as Forças Armadas (fontes independentes dizem que a proporção pode chegar a 40%) o Exército falhava no fornecimento de itens tão básicos quanto absorventes, e que ela e outras colegas frequentemente tinham como única escolha reutilizá-los.

"As mulheres até hoje usam o tradicional algodão branco", diz Juliette Morillot. "Eles precisam ser lavados todas as noites, distantes das vistas dos homens. Por isso, as mulheres levantam-se cedo e lavam".

Recém-chegada de uma visita de campo onde falou com várias mulheres soldado, Morillot confirma o fenômeno.

"Uma das garotas com quem falei, que tinha 20 anos, me disse que treinou tanto que teve a menstruação interrompida por dois anos", contou ela.

Embora Lee So Yeon tenha se juntado ao Exército voluntariamente, em 2015 foi anunciado que todas as mulheres na Coreia do Norte devem prestar sete anos de serviços militares a partir dos 18 anos de idade. Já os homens são obrigados a servir por 10 anos (é o serviço militar obrigatório mais longo do mundo).

Ao mesmo tempo, o governo da Coreia do Norte deu um passo incomum ao distribuir uma produtos de beleza de uma marca governamental.

"Pode ter sido uma maneira de se redimir pelas condições do passado, de corrigir este fenômeno bem conhecido de que as condições ruins para as mulheres", diz Jieun Baek. "Pode ter sido uma maneira de melhorar o ânimo e fazer com que mais mulheres pensem: Uau, nossas necessidades serão atendidas".

Apesar disso, as mulheres soldados baseadas em cidades do interior nem sempre têm acesso a banheiros privados. Algumas disseram a Morillot que muitas vezes têm que fazer suas necessidades na frente dos homens, tornando-se especialmente vulneráveis.

Abuso sexual é rotina

O abuso sexual, dizem Baek and Morillot, é frequente.

Morillot diz que quando abordou a questão de estupros no Exército com mulheres soldado "a maioria disse que acontece com outras". Nenhuma admitiu ter passado por esse tipo de experiência.

Lee So Yeon também diz que não foi estuprada durante sua temporada no serviço, entre 1992 e 2001, mas que muitas de suas companheiras foram.

"O comandante ficava em seu quarto, na unidade, após o serviço, e violava as mulheres sob seu comando. Isso aconteceria repetidamente".

O Exército da Coreia do Norte diz que leva a sério o abuso sexual, com pena de prisão de até sete anos para homens condenados por estupro.

"Mas na maioria das vezes ninguém está disposto a testemunhar. Então os homens geralmente ficam impunes", diz Juliette Morillot.

Ela acrescenta que o silêncio sobre abuso sexual no Exército está enraizado nas "atitudes patriarcais da sociedade norte-coreana" - as mesmas atitudes que garantem que as mulheres no Exército façam a maioria dos serviços domésticos.

As mulheres de origens pobres recrutadas para brigadas de construção, e alojadas em pequenos barracões ou cabanas informais, são especialmente inseguras, diz ela.

"A violência doméstica ainda é amplamente aceita e não denunciada, então no Exército ocorre a mesma coisa. Mas eu realmente deveria enfatizar o fato de existir o mesmo tipo de cultura (do assédio) no exército sul-coreano".