Topo

A bomba atômica soviética poderosa demais para ser lançada duas vezes

Korean Central News Agency/AP
Imagem: Korean Central News Agency/AP

Stephen Dowling

Da BBC Future

29/11/2017 20h43

Na manhã de 30 de outubro de 1961, um bombardeiro Tupolev-95 decolou da base de Olenya, na península de Kola, no norte da então União Soviética.

A aeronave era uma versão modificada da que entrara em serviço alguns anos antes: um monstro de quatro motores, imbuído da missão de carregar as bombas nucleares russas.

Leia mais: 

A década anterior tinha registrado um enorme salto no programa bélico russo. URSS e EUA tinham lutado lado a lado na Segunda Guerra Mundial, mas o relacionamento esfriou nos anos seguintes, dando lugar à Guerra Fria.

E a rivalidade com uma potência nuclear fez com que os soviéticos tivessem apenas uma opção - correr atrás do tempo perdido. E rápido.

Testes e mais testes

Em 29 de agosto de 1949, os soviéticos testaram seu primeiro artefato nuclear, conhecido como "Joe 1" no Ocidente, nas estepes remotas do que hoje é o Cazaquistão. Usaram inteligência obtida junto ao programa atômico americano. Nos anos seguintes, houve testes e mais testes - 80 ao todo.

Apenas em 1958, os soviéticos testaram 36 bombas.

Mas nada se comparava à que carregava o Tupolev-95. Uma enorme bomba, grande demais para caber no compartimento de carga da aeronave.

O artefato tinha 8 metros de comprimento e 2,6 metros de diâmetro, pesando mais de 27 toneladas. E um formato cilíndrico bem similar ao de "Little Boy" e "Fat Man", as bombas despejadas pelos EUA sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em 1945.

A bomba soviética era conhecida por uma miríade de designações técnicas - Projeto 27000, Produto Código 202 e RDS-220.

Destruidora de cidades

Mas tinha ficado mais conhecida como "A Bomba do Czar".

Era mais do que uma simples bomba. Era o resultado de uma tentativa de cientistas soviéticos de criar a mais potente bomba nuclear do mundo, com o aval do então premiê, Nikita Kruschev.

Era uma destruidora de cidades, uma arma de último recurso.

O Tupolev, pintado de branco para mitigar os efeitos do clarão da bomba, chegou perto de seu alvo, Nova Zemlya, um arquipélago esparsamente habitado no Mar de Barents.

O piloto, o major Andrei Durnotsev, conduziu a aeronave até a Baía de Mityushikha, um campo de testes soviético, a uma altura de 10 mil metros. Uma aeronave menor, um Tupolev-16, voava ao lado, pronto para filmar a explosão e monitorar a radiação no ar.

Para que os dois aviões tivessem chance de escapar da explosão - e o cálculo era de que havia apenas 50% de chance disso -, a "Bomba do Czar" foi liberada com o auxílio de um paraquedas.

A bomba iria descer devagar até uma altura pré-determinada (3,9 mil metros) e detonar. Naquele momento, os dois aviões deveriam estar a pelo menos 50 quilômetros dali, o que deveria ser distante o suficiente para que sobrevivessem.

A bomba explodiu às 11h32m (no horário de Moscou). Criou uma bola de fogo de cinco milhas de largura e que podia ser vista de uma distância de 1 mil quilomêtros. A nuvem em formato de cogumelo atingiu uma altura de 64 quilômetros e uma largura que chegou a 100 quilômetros. De longe, deve ter sido uma visão impressionante.

Em Novaya Zemlya, porém, os efeitos foram catastróficos. Em Severny, a 55 quilômetros do epicentro da explosão, todas as casas foram destruídas. Em locais a centenas de quilômetros da zona de detonação, houve todo o tipo de danos - de janelas explodindo a casas desabando. Comunicações por rádio sofreram interferência por mais de uma hora.

Durnotsev escapou por um milagre: a onda de choque da bomba fez com que o Tupolev-95 perdesse mais de 1 mil metros de altitude antes que o piloto recuperasse o controle.

Um cinegrafista que testemunhou a detonação fez um relato.

"As nuvens sob a aeronave e à distância foram iluminadas por um clarão poderoso. O mar de luz se espalhou e fez com que até as nuvens ficassem transparentes. Naquele momento, a aeronave emergiu de duas camadas de nuvens e, abaixo, uma imensa e brilhante bola laranja estava emergindo. Era poderosa como Júpiter. Devagar e silenciosamente, ela crescia e parecia sugar a Terra".

A bomba liberou uma quantidade inacreditável de energia, estimada por especialistas em algo em torno de 57 megatons - ou 57 milhões de toneladas de TNT. Isso equivale a mais de 1.500 vezes o poder destrutivo das bombas de Hiroshima e Nagasaki combinadas e 10 vezes mais poderoso que todas as munições usadas na Segunda Guerra Mundial.

Sensores detectaram que a onda de choque da bomba deu três voltas ao mundo.

Uma explosão desse quilate não poderia permanecer secreta por muito tempo. Os EUA, por exemplo, tinham um avião espião a apenas alguns milhares de quilômetros da zona de testes, equipado com um instrumento para detectar explosões nucleares. Dados coletados por essa aeronave foram usados por uma comissão internacional para calcular o poder da bomba soviética.

Protestos internacionais logo surgiram, não apenas de Washington e do Reino Unido, mas também de vizinhos russos, como a Suécia. O único aspecto positivo foi que a detonação aérea evitou o contato com o solo e deixou uma quantidade surpreendentemente baixa de radiação.

Isso poderia ter sido bem diferente. Uma mudança no design evitou que a "Bomba do Czar" fosse duas vezes mais poderosa.

Um dos arquitetos deste formidável artefato foi um fisico soviético chamado Andrei Sakharov, um homem que posteriormente ficaria mais famoso por suas tentativas de livrar o mundo das mesmas armas que ele tentou criar. Sakharov era um veterano do programa atômico soviético e fez parte da equipe que construiu as primeiras bombas da URSS.

Sakharov começou a trabalhar em um artefato do tipo "fissão-fusão-fissão", uma bomba que geraria mais energia a partir dos processos em seu núcleo.

Para isso, deutério (um átomo instável de hidrogênio) era envolvido em uma camada de urânio enriquecido. O urânio capturaria nêutrons do deutério em ignição e iniciaria sua própria reação. Sakharov batizou o processo de "bolo de camadas".

E essa descoberta permitiu que a URSS construísse sua primeira bomba de hidrogênio, um artefato muito mais poderoso que as bombas atômicas anteriores.

Sakharov cumpriu a missão dada por Kruschev: construir a bomba mais poderosa de todas.

Os soviéticos precisavam mostrar que poderiam ultrapassar os EUA na corrida armamentista, de acordo com Philip Coyle, ex-coordenador do programa de testes nucleares americanos durante a administração de Bill Clinton (1993-2000), e que passou 30 anos projetando armamentos deste tipo.

"Os EUA estavam bem à frente por causa do trabalho feito para preparar as bombas de Hiroshima e Nagasaki. E realizaram uma série de testes antes mesmo de os soviéticos realizarem um único. Os soviéticos estavam tentando algo que mostrasse ao mundo que deviam ser temidos. A "Bomba do Czar" foi criada justamente para isso".

O design original - uma bomba de três camadas, com o urânio separando cada estágio, teria um poder de 100 megatons. Os soviéticos nunca tinham testado nada com esse poder. Alguns cientistas simplesmente acharam que era demais.

Era tanta potência que não havia garantia de que bomba não envolveria o norte da URSS em uma nuvem radioativa. Isso preocupava especialmente Sakharov.

"Ele estava apreensivo com a quantidade de radiação que seria criada e os efeitos genéticos em gerações futuras", diz Frank von Hippel, físico e diretor de Assuntos Públicos e Internacionais na Universidade de Princeton (EUA).

"Foi o início da jornada que o levou de projetista de armamentos a dissidente".

Antes de a bomba ser testada, camadas de urânio foram substituídas por chumbo, o que diminuiu a intensidade da reação nuclear. Os soviéticos tinham construído uma arma tão poderosa que temiam testá-la em sua capacidade completa. E isso era apenas um dos problemas.

Os Tupolev-95 tinham sido construídos para carregar armas muito mais leves. A "Bomba do Czar" era grande demais para ser colocada em um míssil e pesada demais para que as aeronaves chegassem ao alvo com combustível suficiente. E, se a bomba fosse poderosa o suficiente, a missão teria apenas de ida de qualquer jeito.

Coyle, que hoje trabalha no Centro de Controle de Armas e Não-Proliferação, um centro de estudos baseado em Nova York, explica que mesmo armas nucleares podem ser poderosas demais. "É difícil encontrar um uso para ela, a não ser que você queria demolir cidades bem grandes. (A bomba) era grande demais para ser usada".

Von Hippel concorda. "Essas bombas foram projetadas para você destruir o alvo mesmo se errasse por uma milha. Mas as coisas seguiram de maneira diferente - uma direção do aumento da precisão de mísseis e o uso de ogivas múltiplas".

Havia ainda outros efeitos da "Bomba do Czar". O teste tinha potência equivalente a 20% de todos os testes atmosféricos realizados antes e, segundo von Hippel, pode ter determinado o fim deste tipo de procedimento, em 1963. Von Hippel explica que Sakharov estava particularmente preocupado com a quantidade de carbono 14 radioativo liberado na atmosfera.

"Isso foi mitigado por todo o carbono emitido por combustíveis fósseis na atmosfera, o que diluiu (o carbono radioativo)".

Sakharov temia que uma bomba maior que a testada causasse um inverno nuclear global, espalhando lixo tóxico ao redor do planeta.

O físico tornou-se um militante entusiasmado de uma convenção que em 1963 baniu parcialmente os testes nucleares. E se posicionou arduamente contra a proliferação nuclear. Ele foi gradualmente alijado pelo estado soviético e em 1975 recebeu o Premio Nobel da Paz.

A "Bomba do Czar", aparentemente, teve outro tipo de efeito que o originalmente imaginado.