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'Lobo Feroz', o homem acusado de abusar de 276 crianças na Colômbia

Gustavo Ocando Alex - De Maracaibo, Venezuela, para a BBC Mundo

05/02/2018 19h54

O oitavo computador da lan house era o seu favorito. Ele sentava na frente dele diariamente todos os dias transcrevendo textos, preparando slides e editando vídeos para seus clientes ou dando uma olhada no seu Facebook.

Ele sempre ficava de frente para a parede, com a cabeça baixa, até se isolar por completo do barulho ao redor. Do seu lado, havia uma bolsa cheia de balas e doces coloridos de vários sabores.

As guloseimas não eram para ele.

Juan Carlos Sánchez Latorre carregava-as para os meninos que frequentavam a lan house entre 2008 e 2009, geralmente para fazer trabalhos escolares. O local ficava na avenida Libertador de Maracaibo (oeste da Venezuela), em frente a uma quadra de basquete entre ruas cheias de comércio.

A idade deles variava entre sete e 12 anos. O homem colocava as crianças entre suas pernas, no colo, para mostrar a eles jogos online ou abrir contas para eles em redes sociais por onde poderiam se comunicar depois.

Deixi Tapia, uma mulher morena, simpática, que tinha perto de 50 anos e era dona da lan house Vasedeca, tem arrepios quando se lembra dessas cenas - que sempre pareceram normais para ela.

Ela repreendia constantemente, sem sucesso, aquele homem de origem colombiana, especialista em computação e de atitudes reservadas, que trabalhou para ela por 18 meses. Ela o conheceu como "Danilo Gutiérrez".

As autoridades da Colômbia têm registros de sua verdadeira identidade: Juan Carlos Sánches Latorre, nascido em 13 de setembro de 1980 em El Espinal (Tolima), criado em Barranquilla e denunciado em seu país por 276 abusos de meninos e meninas entre 2001 e 2006.

Ele foi preso recentemente na Venezuela - a polícia o procurava havia mais de cinco anos. "Eu sabia que ele tinha algo a esconder, sabia! Sabe Deus o estrago que ele causou", diz à BBC a ex-chefe de Sánchez, ainda em choque com as reportagens sobre seu ex-funcionário na imprensa. Sánchez foi preso em dezembro do ano passado na cidade.

Ele já estivera detido na cidade colombiana La Modelo entre março e novembro de 2008, mas o Sétimo Tribunal Penal Municipal de Barranquilla ordenou sua liberação devido ao vencimento dos termos no julgamento contra ele por abusar de uma criança de oito anos de idade.

Foi quando aproveitou a oportunidade para fugir para a Venezuela.

Deixi - Humberto Matheus - Humberto Matheus
Imagem: Humberto Matheus

'Modus operandi'

Sánchez ficou livre até 30 de janeiro de 2017, nove anos depois, quando a Interpol entrou na jogada. As investigações internacionais revelaram que havia um "modus operandi" na maneira como Sánchez atuava. Ele entrava em contato com os meninos em shoppings ou nas ruas de Barranquilla e os levava depois para motéis para fazer fotos e filmagens deles nus, oferecendo-lhes dinheiro ou ameaçando-o com armas brancas.

A imprensa colombiana se referia a ele como "Lobo Feroz" ou "Sadyko 13", como o próprio criminoso se identificava na internet. Ele encontrou um esconderijo na Venezuela no final de 2008, segundo conhecidos e vizinhos.

Deixi o descreve como um homem de recursos escassos, instável, nômade que em nenhum momento mencionava seu passado na Colômbia. Segundo ela, Sánchez demonstrava pânico diante das câmeras e fugia delas. Odiava quando alguém queria tirar foto dele e alegava que "não era fotogênico".

Causava estranheza que comprasse guloseimas para as crianças, uma vez que conhecido justamente por sua avareza. "Ele não tomava nem água se tivesse que comprá-la".

Discussões e suspeitas

No começo, ele era um funcionário bem versado em suas habilidades informáticas, respeitoso, que seguia todas as diretivas da lan house - fez até amizades com professores e estudantes de faculdades e universidades próximas.

"Ele trazia muitos clientes. Eu deveria ter notado", se desculpa Deixi.

Depois, Sánchez começou a desafiá-la em discussões de trabalho e demonstrou pouca paciência com clientes, especialmente com as mulheres.

"Danilo", como se apresentava, controlava os computadores - somente ele tinha as senhas de acesso e desbloqueava as máquinas para as crianças e adolescentes usarem, ainda que as leis da cidade proibissem a permanência de menores de idade em lugares com acesso à internet.

"Eu fechei os olhos para isso, me enganei. E ele prejudicou muitas crianças, especialmente os meninos", lamenta Deixi.

Mas ela começou a prestar mais atenção em Sánchez e em seu comportamento suspeito.

"Ele andava com um gorro na cabeça. Na praça Bolívar, ele sempre andava com cinco ou seis meninos da região."

Em novembro do ano passado, dias antes de as autoridades da Interpol prenderem Sánchez, Deixi o encontrou em uma agência bancária, onde ele lhe apresentou sua suposta esposa, Mariana, uma jovem de 20 anos recém-formada em Comunicação Social.

Sua ex-chefe ainda brincou que era a primeira vez que ela o via sem gorro na cabeça.

"As pessoas vão amadurecendo, superando as frustrações", ele respondeu.

Comportamento

Sánchez se apresentava como Danilo também no lugar onde morava. Mildred*, a cabeleireira que era dona do estabelecimento e alugava os quatro quartos superiores, conta que ele era uma pessoa discreta, que nunca infringiu nenhuma regra da casa, e com quem pouco falava - apenas um "bom dia" ou "boa noite" quando se cruzavam.

Ela foi surpreendida pelas autoridades da Interpol que vieram buscá-lo em 1º de dezembro às 10h da manhã. Sánchez morou ali por pouco mais de três meses e uma vez chamou a atenção por pagar o aluguel em dinheiro em espécie, algo bem raro de se ter na Venezuela.

A polícia voltou horas depois para devolver a Mildred as chaves das portas do primeiro andar e do quarto dele, após recolher roupas e pertences do suspeito. Ali havia cartazes de séries infantis, como "Power Rangers" e os "Cavaleiros do Zodíaco".

'Alfaiate'

Sergio*, vendedor de sucos e cigarros na rua Carabobo, região de casas antigas e fachadas coloridas considerada patrimônio cultural de Maracaibo, ficou boquiaberto ao saber que o Juan Carlos que ele via com frequência era um abusador de menores.

"Ele vinha todos os dias almoçar neste restaurante", disse ele apontando para Kantv, um pequeno estabelecimento da área.

Sánchez foi vizinho de Sergio há 10 anos.

Era uma pessoa "normal, fechada e de porte fraco", descreveu Sergio. Ele conta que Sánchez estava sempre de shorts e camisetas esportivas quando andava por ali, perto das sedes administrativas da prefeitura, do governo, do Conselho Legislativo e da catedral.

Sergio diz que Sánchez sempre mostrava bolos de notas de bolívares ao pagar suas comidas. Ele andava com uma fita métrica no pescoço e se vendia como "alfaiate".

Um dia, Sergio brincou com ele e convidou-o para viajar à Colômbia para escapar da crise econômica venezuelana. "Ele me disse que não, que lá a vida era difícil e que era melhor ficar aqui. Às vezes eu o via com garotas bonitas de 18 ou 20 anos."

Néstor Humberto Martínez, procurador-geral da Colômbia, informou no dia 24 de janeiro que seu escritório pediu à Venezuela a extradição de Sánchez. Ele também convocou as vítimas do abusador no país para comparecer às audiências.

Na Venezuela, não há registros de acusações contra ele.

Passado

Um adolescente de uns 15 anos foi vizinho de Sánchez entre 2014 e 2017 na rua 96F do bairro Los Claveles. Conta que nunca ouviu nada sobre os casos de abuso sexual envolvendo aquele que se apresentava como "Danilo".

"Ele morou aqui. No celular dele, um Nokia velho, tinha uns 800 jogos. Mil tipos de Dragon Ball. Ele ficava perto de casa para roubar a senha do wifi", relata.

A vizinhança o via como um homem inocente, conversador, especialista em computadores que ajudava as pessoas com trabalhos universitários.

Por algum tempo, Sánchez se dedicou a revender comida. Chegou a passar necessidade, perdeu peso e não conseguiu pagar o aluguel - teve que vender seus eletrodomésticos para sobreviver.

"Danilo" não vivia sozinho. Ele morava com a mulher, Roselín, com quem manteve uma relação de mais de dois anos pelo menos, segundo contam os vizinhos. A mulher declarou ao jornal "Diario Versión Final" que Sánchez chegou a amarrá-la na cama para forçá-la a ter relações sexuais.

Ela também denunciou que ele a fotografava nua, sob ameaça, e disse que o ex-marido tinha uma câmera cheia de imagens eróticas.

O Facebook era, talvez, um dos únicos lugares em que "Danilo" revelava sua identidade real. Na página, ele usava seu nome verdadeiro, "Juan Carlos Sánchez", e se descrevia como "técnico de computadores, trabalhador, desenvolvedor de soluções, criativo, analista e divertido".

Mensagens bíblicas, anúncios de aparelhos eletrônicos à venda, fotografias de Mariana, sua namorada, publicações de autoajuda, relatos sobre videogames e imagens dos "Cavaleiros do Zodíaco" são algumas das coisas que ele publicou em seu mural.

Mas enquanto disfarçava nas redes sociais, Sánchez somava vítimas. Reportagem no jornal colombiano "El Tiempo" cita Sánchez como um dos "principais fornecedores de pornografia infantil" ao mexicano Héctor Manuel Farías, abusador em série preso em julho de 2007 e que distribuía o material para vários países, segundo a Interpol.

A investigação descobriu 1,4 mil envios de materiais ao mexicano em que as vítimas são meninos entre dois e 15 anos. O colombiano recebeu entre 200 e 400 dólares pelos catálogos de imagens de meninos de Barranquilla, segundo autoridades citadas pelo jornal.

Edição de vídeos

Dona de outra lan house onde Sánchez trabalhou, Leidys* foi surpreendida com um grito súbito dele enquanto dialogava com um cliente que perguntou se ali era possível contratar edições de vídeo. Quando ela estava negando o serviço, Sánchez a interrompeu: "Eeeei! O que é? Eu sei editar vídeos".

Isso aconteceu em agosto de 2017. Foi seu terceiro emprego no setor de lan houses, bem perto de onde ele morava - e onde acabou sendo preso meses depois.

"Ele entende muito de computação. Não consigo acreditar que seja essa pessoa de quem estão falando", conta a mulher. "Ele era 100% profissional. Gostava de vir trabalhar até mesmo aos domingos."

Esses, inclusive, eram os dias em que ele não tinha qualquer supervisão.

"Danilo" tinha dezenas de documentos bloqueados em seus computadores e redes na lan house.

Esses "cercos" tecnológicos dificultavam o trabalho dos próprios donos e provocaram sua demissão.

"Ele mudava diariamente os IPs (números de identificação da rede) dos computadores, até três ou quatro vezes por dia". Esses registros permitem às autoridades e especialistas em computação saber a localização de todos os usuários da internet.

Nem ela, nem o marido sabiam mudar a configuração das redes. A maioria delas tinha o nome do ex-funcionário. "Danilo 01", "Danilo 02", Danilo 03". Os acessos às redes eram restrito a quem detinha usuário e senha que só ele conhecia.

Meses antes, funcionários da Interpol haviam prendido o dono de uma outra lan house ali perto que era frequentada por Sánchez. O local estava envolvido em uma denúncia de que alguém havia feito o upload de um vídeo de pornografia infantil dali.

Leidys conta que o ex-funcionário sempre ficava inquieto quando se falava sobre polícia e que, em uma ocasião, quando ela precisou chamar policiais para o estabelecimento, ele logo saiu correndo.

'Quem sabe tenha deixado a maldade para trás'

Michell Parra é um jovem de 20 e poucos anos, moreno, magro, de 1,68 m de altura. Seus pais contrataram Sánchez para trabalhar em seu negócio, a apenas alguns metros de distância da lan house de Deixi, que o havia demitido por mau comportamento.

"Era como um tio para nós. Nunca o vi como abusador. Ele não tinha muito dinheiro. Era muito saudável, não tinha qualquer vício. Seu único vício, aliás, era o computador", conta, defendendo o Juan Carlos que ele conheceu.

Parra se diz incrédulo ao descobrir as acusações que pesavam sobre seu amigo. Os dois compartilhavam o gosto por animes. Saíam juntos para se divertir, apesar da diferença de idade.

"Éramos do mesmo círculo de amizade. Ele foi meu professor. Era um mestre, um deus do computador. Nunca mostrou esse lado de abusador para nós", afirma.

O grupo era formado por sete jovens e por Sánchez. Eles saíam juntos para beber e falar sobre as namoradas.

Parra não acredita nos maus-tratos que ele teria imposto a Roselín, que também era sua amiga. "Ela nunca falou sobre isso. Nunca apareceu com marcas, nem nada", diz.

Ele diz também não acreditar que Sánchez tenha administrado cifras milionárias em fronteiras estrangeiras.

"Eu via os extratos de sua conta e ele não tinha muito dinheiro. Eu o ajudei a vender as coisas porque ele não tinha como se sustentar", defende.

Sobre a vida que levava na Colômbia, Sánchez havia dito apenas que morava com a mãe e que se mudara para a Venezuela em busca de uma vida melhor.

Ele nunca mencionou nenhum tipo de acusação.

Ainda segundo Parra, Sánchez chegou a fazer amizade com policiais, a quem ajudava em apresentações de trabalho. Um detetive da Interpol teria dado a ele uma recompensa em dinheiro pela ajuda a conseguir três qualificações consecutivas.

Parra confessa que prefere acreditar que Juan Carlos, seu "mestre e protetor", seu amigo, teve sua personalidade transformada quando se mudou para Maracaibo.

"Vai ver ele deixou para trás toda a maldade que tinha no passado. Eu nunca desejaria nenhum mal para ele. Se o encontrasse hoje, eu daria um abraço. Sempre foi um bom amigo para mim e nunca vi esse monstro que ele escondia", conclui.

*Nomes fictícios