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Por que o assassinato de Marielle virou palco de batalha ideológica nas redes

FGV DAPP
Imagem: FGV DAPP

Camilla Costa - Da BBC Brasil em São Paulo

16/03/2018 22h09

"Não tenho por que lamentar a morte de quem defendia bandido" versus "Marielle morreu porque era negra, mulher e contra a intervenção militar no Rio". Esta é apenas uma das facetas da batalha ideológica provocada nas redes sociais brasileiras pelo assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, do PSOL, na última quarta-feira.

Só no Twitter, segundo levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV Dapp), o caso teve 567,1 mil menções em 19 horas - entre as 22h do dia 14 de março, minutos depois do crime, e as 17h do dia 15 de março. Na noite de quarta, foram registrados 594 tuítes por minuto sobre o tema.

"É um dos maiores picos do ano sobre eventos relacionados à segurança, quase tão grande quanto as menções à intervenção federal no Rio, quando ela foi anunciada", disse à BBC Brasil a pesquisadora da FGV Ana Luisa Azevedo, uma das responsáveis pelo levantamento.

Segundo a pesquisa, as palavras "negra", "mulher", "execução" e "executada" estão entre as dez mais usadas nas mensagens sobre a vereadora.

Elas ajudariam a expressar as interpretações majoritárias sobre o assassinato: a de que a morte de Marielle Franco seria um símbolo da perseguição a líderes de minorias por um estado autoritário e a noção de que minorias estão sujeitas a violência por agentes de segurança, especialmente se forem críticas às corporações policiais. As investigações não permitem endossar até o momento tais opiniões.

"A execução da Marielle é uma amostra clara de que a intervenção começou de fato contra a justiça, contra a democracia. Assim como no passado", disse uma participante do Twitter.

Por outro lado, houve quem considerasse que a morte da vereadora seria uma prova de que suas críticas à violência policial seriam uam defesa dos criminosos que a teriam vitimado. Tampouco é possível afirmar isso à luz das investifgações por enquanto.

"PSOL defende tanto bandido e agora quer justiça?", questionou um usuário do microblog.

Em resposta a isso, muitos posts também expressavam frustração e decepção com comentários que comemoravam - ou se recusavam a lamentar - a morte da vereadora. Na reclamação, valia inclusive compartilhar conversas privadas no WhatsApp, como fez uma mulher. "Não acredito que alguém tão próxima de mim pense assim", desabafou.

Ana Luisa Azevedo, no entanto, afirma que comentários críticos a Marielle representavam apenas 7% do total de menções ao caso nos últimos dias, de acordo com o levantamento da FGV Dapp. Já o número de menções de luto e trajetória de Marielle respondeu por 88% do debate.

"Os dados mostram que o apoio é muito mais em relação ao que ela representava - como pessoa de origem humilde, que representava diversas bandeiras - do que um discurso contra a defesa do direitos humanos", avalia.

Os tais direitos humanos

O apoio à defesa dos direitos humanos parece ter transcendido as filiações partidárias no debate surgido a partir da morte de Marielle, argumenta Azevedo.

"O que vimos foi que não só políticos, meios de comunicação, partidos ou celebridades influenciaram esse debate, como costuma acontecer. Vimos muito uma mobilização popular de pessoas comuns, cidadãos falando sobre o assunto", diz.

"O fato de esse debate não estar concentrado em um grupo específico mostra que 'direitos humanos' é algo que vai além de partido, mobiliza a sociedade."

Para o psicanalista Tales Ab'Saber, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é latente, na sociedade brasileira, a crítica aos defensores da garantia incondicional aos direitos humanos. Esse é um tema que, em momentos como este, tende a vir à tona.

"Podemos dizer que o Brasil tem origem numa forma social que desconhece os direitos humanos, com uma grande população trabalhadora excluída de direitos, que foram os escravos. E ao longo do século 20 tivemos vários episódios autoritários que reforçaram isso", pondera.

"No Brasil existe uma ambiguidade muito grande em que a democracia é discutida por uma estrutura autoritária profunda, que tem a ideia de que os direitos não são para todos. Marielle era tendência oposta à essa"

Nos últimos dias, até mesmo figuras ligadas a grupos liberais e conservadores, à direita do espectro político, se manifestaram contra a "comemoração" da morte de uma defensora de direitos humanos nas redes sociais.

O economista e integrante do programa televisivo Manhattan Connection Ricardo Amorim disse em seu perfil de Facebook que, apesar de discordar das posições políticas da vereadora, não consegue "aceitar que tanta gente diga que 'ela defendia bandidos, merecia morrer'".

"Se discordar do que eu acredito fosse razão para alguém merecer morrer, não sobrava ninguém no mundo; nem eu mesmo, que toda hora aprendo algo novo e, muitas vezes, mudo minhas crenças."

De acordo com Ab'Saber, é importante mostrar com dados, como no levantamento da FGV Dapp, que "muito do pensamento autoritário na rede e também da produção de mentiras públicas vêm de grupos muito pequenos que tem suas produções muito ampliadas".

Mas para o psicanalista Christian Dunker, da Universidade de São Paulo, "a existência destes 7% (de críticos a Marielle Franco no momento de sua morte) já é muito".

"Isso mostra nossa incapacidade de estar no debate, mas respeitar esse momento trágico. Vamos lembrar que podemos brigar, mas vamos terminar todos lá no cemitério. Temos opiniões diversas, mas temos um problema comum que se chama Brasil."

'Estardalhaço'?

De outro lado, críticos da esquerda e do PSOL, partido de Marielle, argumentam que o "estardalhaço" em torno do assassinato seria uma manobra para galvanizar opiniões contra o governo Temer e a intervenção militar.

"A morte da vereadora Marielle deveria reforçar a discussão sobre o enfrentamento do narcotráfico e da bandidagem, bem como da necessidade de se manter a intervenção federal no RJ. Contudo, a tragédia só está servindo da palco ideológico para atacar a intervenção e o governo federal", lamenta um comentador na rede social.

Estes críticos dizem, ainda, que a comoção "esquece" as mais de 60 mil mortes violentas que ocorreram no Brasil em 2016, incluindo as de policiais - dado mais recente divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Uma montagem de fotos de duas policiais militares negras mortas em ataques de criminosos a UPPs do Rio em 2012 e 2014, Fabiana Aparecida de Souza e Alda Rafael Castilho, circula com a mensagem: "Mulheres, negras, pobres e brutalmente assassinadas no Rio. Se você nunca ouviu falar delas, é porque não eram militantes de esquerda, eram policiais".

À época, os crimes contra as duas policiais foram amplamente noticiados por meios de comunicação locais e nacionais.

Outros já compartilham da teoria conspiratória de que a vereadora teria sido morta pelo narcotráfico de modo a simular uma execução perpetrada por policiais ou milicianos, com o intuito de minar o apoio popular à intervenção federal no Estado do Rio.

"Marielle seria um alvo escolhido por reunir características que gerariam comoção nacional e questionamento da intervenção, e passar a mensagem de que o comando do tráfico ainda está no comando e há questões que não devem ser mexidas", diz uma mulher no Twitter.

A proliferação de suposições, teorias da conspiração e notícias falsas a respeito do caso Marielle Franco é, segundo Ana Luisa Azevedo, da FGV Dapp, esperada pela repercussão do evento nas redes sociais.

O grau de penetração destas publicações, no entanto, ainda não foi medido pela equipe.

"Ainda não tivemos tempo hábil de fazer busca por informações falsas, mas em um evento com essas proporções é importante termos a responsabilidade de verificar a procedência de informações ao retuitar algo", alerta.

Nos últimos dias, boatos que ligavam a vereadora ao traficante Marcinho VP e ao Comando Vermelho, e outros que diziam que sua morte poderia ser utilizada para aumentar o "nível de alerta no Rio" e suspender as eleições começaram a se espalhar pelo Facebook e pelo WhatsApp. Ambos, no entanto foram esclarecidos pelas agências de checagem de fatos Lupa e Aos Fatos.

'Falta de empatia'

Dois dias depois da morte da vereadora - e de textões e debates acalorados nas redes - muitos participantes já começam a rejeitar qualquer enquadramento político do assassinato.

"Tá faltando humanidade. Tá faltando empatia. E não me refiro apenas à direita, a esquerda também não tem que usar a morte dela para defender ideias políticas. Antes de qualquer posicionamento político, uma pessoa morreu cruelmente", disse uma mulher no Twitter.

"É Temer usando a morte para justificar a intervenção, é Dilma usando a morte para dizer que faz parte do golpe. Por isso políticos como Marielle vão fazer falta. Porque a renovação está difícil, e a velha guarda consegue transformar tudo em palanque", afirmou outro usuário.

Na opinião de Tales Ab'Saber, no entanto, não é mais possível separar a morte de Franco de sua atuação política - mesmo que ainda não esteja comprovada uma possível motivação política para o crime.

"A militância dela era de mulher, negra, com a defesa da população favelada do Rio de Janeiro. Não dá pra dizer que é uma pessoa qualquer que levou um tiro na rua. Isso também é querer esvaziar a dimensão política do fato e a violência política que está acontecendo no Brasil", afirma.

Dunker diz ainda que a apropriação de um episódio dessa dimensão por grupos políticos é inevitável.

"A política necessariamente faz isso. Mas é ruim destruir a força desse evento simplesmente por causa disso. É preciso entender que ele tem importância, sim. Senão, se reduz a morte de uma pessoa a uma conversa de opiniões", afirma Dunker.

Para ele, as pessoas adotam o caso da vereadora - uma tragédia humana - para expressar suas insatisfações mais amplas com o país.

"A gente pode não saber exatamente o que a morte de Marielle significa, mas sabe que isso tocou a todos nós. Por isso muitas pessoas dizem 'quero uma investigação rigorosa'. Porque é essa investigação que passa por Brasília, por desvio de caixas de munição, por ligações entre polícia e milícias, pela apropriação da mídia. Mas ainda é a morte de alguém."