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'Ele morreu duas vezes': a batalha de uma mãe para tirar da internet 'fake news' que acusam filho morto de ser traficante

Bruna da Silva passou dias levando a camisa do uniforme escolar do filho para protestos e atos no Rio de Janeiro - Agência Câmara
Bruna da Silva passou dias levando a camisa do uniforme escolar do filho para protestos e atos no Rio de Janeiro Imagem: Agência Câmara

Luiza Franco - Da BBC News Brasil em São Paulo

11/03/2019 14h35

Marcos Vinícius, de 14 anos, morreu baleado em uma operação policial no Complexo da Maré. No mesmo dia, começou a circular em redes sociais uma foto de um adolescente parecido com ele segurando uma arma e sorrindo.

Bruna da Silva passou dias levando a camisa do uniforme escolar do filho para todos os cantos da cidade. Queria mostrar, em protestos, entrevistas, encontros com autoridades, a mancha de sangue na peça de roupa, resultado de um tiro que perfurou o tronco do menino.

A bala matou Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, em junho de 2018, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Bruna acusa o Estado pela morte de seu filho.

Naquela manhã, e a Polícia Civil fazia uma operação para cumprir mandados de prisão. A BBC News Brasil procurou a a corporação para que relatasse sua versão, mas a assessoria de imprensa respondeu apenas que o caso está sendo investigado.

No mesmo dia, aconteceu o que Bruna descreve como a segunda morte de Marcos Vinícius. Enquanto o menino era operado, começou a ser compartilhada em redes sociais uma foto que mostra um adolescente parecido com Marcos, sem camisa, segurando uma arma apontada para o céu e sorrindo.

Acusavam Marcos de ter envolvimento com o tráfico de drogas - o tom das mensagens dava a entender que isso justificaria uma execução. A postagem se espalhou como fogo.

"Não tive luto. Enterrei o Marcos e falei 'agora vamos combater esse fake news'. Uma mãe não pode ficar em casa vendo seu filho ser esculachado na internet. Graças a Deus eu limpei o nome dele. Só a gente sabe a dificuldade que é criar um adolescente aqui dentro sem ele virar traficante", diz Bruna.

'Eles não viram que eu estava de uniforme, mãe?'

Este é o depoimento de Bruna sobre o que aconteceu.

Eram 7h30 quando ela acordou, naquela manhã de quarta-feira, no apartamento de um cômodo onde mora a família, na Vila dos Pinheiros, uma das favelas do Complexo da Maré.

Ela costumava despertar o filho às 7h todos os dias, mas na noite anterior esquecera de acionar o alarme. Marcos se vestiu às pressas, mas quis passar na casa de um amigo para que caminhassem juntos até a escola. Os dois acabaram perdendo o horário, e não foram à aula, diz Bruna.

"Lá para as 9h, o águia (helicóptero da polícia) entrou dando tiro. Naquele momento ninguém tinha dimensão do que estava acontecendo na comunidade. Achamos que o helicóptero tinha passado, dado tiros e pronto. Mas não, estava acontecendo uma operação", diz ela.

Entidades de defesa de direitos humanos criticam o uso de helicópteros em operações. Já a polícia diz que eles são necessários para evitar confrontos.

Bruna segue com o relato, reproduzindo o que ouviu de uma testemunha. "Eles correram e se esconderam. Quando o helicóptero passou, saíram. Mas aí toparam com um blindado [veículo de combate usado por forças de segurança em favelas]." Segundo ela, os dois deram meia-volta, mas Marcos foi alvejado.

O objetivo da operação era combater o tráfico de drogas e cumprir mandados de prisão. Naquele dia, suspeitos de envolvimento com o tráfico foram mortos dentro de uma mesma casa. Ninguém foi preso.

Quando soube que ocorria uma operação, Bruna diz ter pensado: "E se o Marcos não estiver na escola? E se não deu tempo de ele chegar?" Ela ligou para o celular do filho, mas quem atendeu foi um amigo, que dizia que ele havia sido baleado e levado para uma unidade de saúde.

Marcos ainda estava vivo quando Bruna chegou. "Ele me falou, 'mãe, o blindado atirou em mim. Eles não viram que eu estava de uniforme?'"

Segundo a Polícia Civil, o caso segue em investigação na Divisão de Homicídios. Estão sendo colhidos os últimos depoimentos e laudos técnicos com as conclusões estão sendo aguardados para que a reprodução simulada do ocorrido seja marcada.

'Fake news me levou do luto à luta'

O menino foi levado a um hospital para ser operado, e Bruna foi para casa buscar roupas, pois pretendia se instalar lá com o filho. "Até aquele momento eu estava pensando, 'Bruna, calma, seu filho está vivo ainda'."

Quando chegou em casa, uma amiga lhe perguntou, "Bruna, você já olhou o Facebook?". Ela disse que não estava com cabeça para isso, mas ficou curiosa. Ao abrir a rede social, viu que muitas pessoas haviam compartilhado uma foto, supostamente do seu filho, com uma arma, como forma de justificar sua morte.

"Cuidei do meu filho com muito carinho, aí eles vão lá e matam. Não basta só matar, tem que difamar. Aí falei, 'eles querem briga, vou brigar'", diz Bruna.

As advogadas Evelyn Melo, Samara Castro e Juliana Durães chegaram ao caso por meio do gabinete do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), para quem Evelyn trabalha. Meses antes, as três haviam conseguido que a Justiça obrigasse o Facebook a retirar do ar informações falsas sobre a vereadora Marielle Franco, do mesmo partido, assassinada em março de 2018.

Elas assumiram também o caso de Marcos. Numa força-tarefa, voluntários reuniram links para perfis e páginas que haviam compartilhado a foto. "Eram muitos", diz Evelyn. "As pessoas não fazem ideia que um simples compartilhamento pode acabar com uma família." As advogadas apresentaram as páginas à Justiça, que determinou que o Facebook apagasse as postagens.

Foi possível identificar postagens que foram importantes para a disseminação da foto, mas não se sabe de onde partiu a corrente. Segundo Evelyn, entre os que compartilharam a foto, havia perfis de policiais. O processo segue. As advogadas agora tentam identificar quem são as pessoas por trás dos perfis que postaram a imagem.

'Eu era uma mulher ativa'

Bruna ainda vive no mesmo apartamento, com o marido, ajudante de pedreiro, e a filha, que hoje tem 13 anos.

"Ela também usou o Facebook para pedir que as pessoas não falassem do irmão dela sem conhecer. Hoje, ela entra pouco lá", diz a mãe.

Bruna, que é empregada doméstica, não está trabalhando. "Hoje ficou complicado para mim. Me prejudicou. Além de eu perder um filho, as pessoas não querem contratar uma pessoa que está processando o Estado."

Ela toma precauções ao sair na rua, pois se sente ameaçada. "Quando saio, é com cautela. Peço para o meu marido me levar até a saída da favela. Procuro despistar. Não só matam nossos filhos, matam a família. Eu era uma mulher ativa, tinha trabalho, podia entrar e sair da favela na hora que quisesse. Mas medo eu não tenho, medo me paralisa, eu não tenho tempo para medo. É só precaução."

Desinformação na favela

Casos de difamação após uma morte violenta não são raros. Segundo Rene Silva, fundador do veículo de comunicação voltado para favelas Voz das Comunidades, algo parecido com o caso de Marcos aconteceu após a morte de Eduardo de Jesus, de dez anos, que foi atingido por um tiro na porta de casa, no fim da tarde de 2 de abril de 2015, numa parte do Complexo do Alemão conhecida como Areal.

Em muitas favelas do Rio, tiroteios podem acontecer a qualquer momento do dia ou da noite, por isso, estar bem informado pode ser questão de vida ou morte.

O Voz das Comunidades informa seus leitores por grupos de Whatsapp sobre a localização de operações, para que eles não acabem na linha de tiro.

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