Topo

Como funciona o sistema de energia na Venezuela e por que entrou em colapso

RONALDO SCHEMIDT/AFP
Imagem: RONALDO SCHEMIDT/AFP

Ángel Bermúdez (@angelbermudez) - BBC News Mundo

12/03/2019 11h23

País com as maiores reservas de petróleo do mundo vive sua pior crise energética - grande parte do território está no escuro desde a última quinta-feira.

"Deus colocou o petróleo que a China precisa para os próximos 200 anos na Venezuela", afirmou o então presidente venezuelano Hugo Chávez, em abril de 2009, durante uma reunião com líderes chineses em Pequim.

Chávez costumava repetir que seu país tinha as maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo, a qual oferecia a seus potenciais aliados - como Belarus, Nicarágua, países anglófonos do Caribe, entre outros.

Menos de uma década depois, essa nação rica em recursos energéticos vive sua pior crise elétrica.

Na última quinta-feira, um apagão afetou praticamente todo o país - e algumas regiões, como Maracaibo, a segunda maior cidade venezuelana, continuavam sem energia elétrica até as 17h de segunda-feira.

Segundo o governo do presidente Nicolás Maduro, o blecaute foi provocado por uma "sabotagem" na usina hidrelétrica Simón Bolívar, a principal do país, conhecida como Guri. Mas especialistas do setor sugerem que a causa foi um incêndio "no corredor" da principal linha de transmissão da usina.

Paradoxalmente, a Venezuela possui, além do petróleo, importantes recursos hídricos, dos quais obtém grande parte da sua energia, graças principalmente a Guri.

A hidrelétrica, localizada sobre o Rio Caroni, no sul do país, foi construída entre 1963 e 1969 - e se tornou a maior usina do tipo no mundo após uma segunda etapa da obra, que terminou em 1986.

Um sistema integrado

A eletricidade proveniente da água e dos combustíveis fósseis converge em um único sistema - o Sistema Interligado Nacional - desenvolvido para abastecer toda a Venezuela.

"Há meio século, os urbanistas do país projetaram (o sistema) assim em função das vantagens comparativas do ponto de vista energético", explica à BBC News Mundo Winston Cabas, presidente da Associação Venezuelana de Engenharia Elétrica, Mecânica e profissões afins da Escola de Engenheiros da Venezuela.

O especialista observa que a Venezuela tem entre 16 mil e 17 mil megawatts instalados de energia hidrelétrica e uma quantidade similar de energia termoelétrica, que somam aproximadamente 34,8 mil megawatts.

"O drama deste país é que hoje, com a crise que vivemos, temos disponíveis apenas de 12 mil a 13 mil megawatts", diz ele.

Desta capacidade, que estava disponível antes do apagão de quinta-feira, o sistema do baixo Caroni era responsável por 11,1 mil megawatts - sendo assim, cerca de 85% do consumo no país dependia de fontes hidrelétricas.

Cabas lembra que a energia gerada por fontes hidrelétricas no sul da Venezuela é transmitida para o resto do país por meio de uma das poucas redes existentes no mundo capazes de operar com um nível extra de linhas de alta tensão: são três linhas de 765 quilovolts, que percorrem cerca de 2,3 mil quilômetros.

Em termos de geração de energia termoelétrica, a Venezuela conta com cerca de 20 centrais, incluindo a Planta Centro, a maior da América Latina.

Falha ou sabotagem?

Com todas essas fontes de energia, o que levou a Venezuela à crise atual?

A versão oficial apresentada pelo governo do presidente Nicolás Maduro sugere que houve sabotagem.

Foi o que afirmou inicialmente o ministro da Energia, Luis Motta Domínguez, seguido pelo ministro da Comunicação, Jorge Rodríguez; e pelo próprio Maduro, que disse que o sistema foi alvo de ataques cibernéticos, eletromagnéticos, assim como de explosões causadas deliberadamente.

Essa versão foi questionada pelo presidente da Assembleia Nacional e líder da oposição Juan Guaidó, que lembrou que desde 2013 as instalações elétricas na Venezuela foram militarizadas e sugeriu que o governo "roubou dinheiro para investir no Sistema Elétrico Nacional".

Especialistas no sistema elétrico venezuelano sugerem, por sua vez, que a crise foi originada por uma soma de circunstâncias.

Cabas, por exemplo, afirma que na quinta-feira houve um incêndio na subestação Malena - próxima a Guri, no sul do país - provocado pela falta de manutenção da vegetação local.

O fogo teria causado superaquecimento em duas das três linhas de 765 kilovolts, que ficaram fora de serviço, e sobrecarregado a terceira linha, que também parou de funcionar.

Essas falhas teriam ativado o sistema de proteção da usina de Guri, paralisando suas máquinas e acabando com a sincronização com a represa de Caruachi.

"Diante desse incidente, se cai o sistema hidrelétrico do baixo Caroni - tirando quase 6 mil megawatts do sistema - e só resta em operação a usina hidrelétrica de Macagua, que produz cerca de 1.150 megawatts e serve apenas para atender cidades ao leste do país, passamos a depender do sistema termoelétrico", diz Cabas.

O especialista ressalta, no entanto, que as usinas termelétricas são responsáveis apenas por cerca de 2.500 megawatts disponíveis.

Mas como isso é possível se a capacidade instalada desse tipo de energia é de 16 mil a 17 mil megawatts, e a Venezuela investiu durante as últimas décadas bilhões de dólares no seu desenvolvimento?

"A crise das usinas termelétricas é multifatorial: falta de recursos humanos, manutenção, investimento, combustível e corrupção", responde o especialista.

A derrocada

Em 2006, Chávez prometeu que a Venezuela se tornaria uma potência mundial de energia.

Mas, alguns anos depois, o país começou a enfrentar problemas de abastecimento - em meio à crise, o governo declarou em 2010 "emergência elétrica", o que permitiria agilizar a compra de equipamentos e peças de reposição, assim como desenvolver planos para melhoria do sistema.

"Através da emergência elétrica, eles aproveitaram para beneficiar alguns grupos ligados ao governo na compra de uma série de usinas termelétricas que - como mostrou um relatório detalhado da Assembleia Nacional - foram adquiridas de governos de países aliados, muitas já estavam 'usadas', foram reativadas e vendidas para a Venezuela como novas ", diz Cabas.

Ele assegura que o governo também adquiriu usinas de geração distribuída, apesar dos alertas feitos por especialistas de que estes empreendimentos não eram destinados ??a uso contínuo.

"Hoje a Venezuela é um ferro-velho para esse tipo de máquina", diz ele.

Também houve falhas nos planos para desenvolver novas fontes de energia hidrelétrica.

O melhor exemplo disso seria a usina de Tocoma, cuja construção começou há mais de uma década, e não contribuiu até agora com um único megawatt dos 2.100 megawatts prometidos.

Cabas conta que também havia planos para desenvolver projetos de energia eólica em regiões como a península de Paraguaná e na Guajira venezuelana (noroeste), que deveria estar contribuindo com cerca de 300 megawatts, mas isso tampouco aconteceu.

"Esses são investimentos que foram feitos, pagos, cobrados e não geram nada", afirma.

De volta à geração termoelétrica, Cabas lembra que a crise da indústria petrolífera venezuelana também afeta esse setor, uma vez que a PDVSA - petroleira estatal - não está produzindo o diesel e o gás que essas usinas necessitam para operar.

Além disso, devemos acrescentar as limitações de pessoal da empresa nacional de energia elétrica Corpoelec, já que a crise na Venezuela provocou a emigração de 50% a 60% da mão de obra qualificada do setor - cerca de 17 mil pessoas, de acordo com Cabas.

Essa falta de mão de obra também seria um desafio para reativar o sistema elétrico. Segundo o especialista, a reativação do sistema interligado deve ser feita manualmente com equipes de especialistas que vão - ao longo dos mais de 2 mil quilômetros de rede - ativando as subestações uma a uma.

Um processo que ainda pode levar vários dias.

Até lá, será difícil para os venezuelanos contar com fornecimento de energia elétrica estável.

Apagão agrava crise na Venezuela

Band Notí­cias