Liberdade de imprensa: 'A luta por justiça depois do assassinato de minha mãe'
Uma vez a cada alguns meses preciso sentar em um sala com a pessoa que está investigando o assassinato da minha mãe. Nossa família o viu pela primeira vez há seis anos, quando ele veio a nossa casa para prendê-la.
Minha mãe havia publicado uma postagem em seu blog sobre um candidato a primeiro-ministro no dia da eleição em Malta, e um dos apoiadores desse candidato fez um boletim de ocorrência.
Foi quando o investigador foi enviado a nossa casa no meio da noite, com um mandado para prendê-la pelo crime que só pode ser chamado de "expressão ilegal".
Eu estava trabalhando do outro lado do mundo e as pessoas me enviavam vídeos dela sendo liberada da delegacia às 01:30, vestindo uma camisa do meu pai.
Algumas horas depois, ela estava novamente online, escrevendo sobre esse abuso em seu site, dividida entre zombar das inseguranças do novo primeiro-ministro e ridicularizar sua própria aparência.
"Peço desculpas por estar numa bagunça total, mas quando o esquadrão de homicídios aparece à noite na sua casa para te prender...escovar o cabelo, passar pó e blush e encontrar algumas roupas atraentes são a última coisa na sua cabeça", ela escreveu.
Agora, o mesmo investigador que prendeu minha mãe naquela noite se vê encarregado da investigação de seu assassinato.
No dia em que foi morta, em 16 de outubro de 2017, minha mãe, Daphne Caruana Galizia, dirigiu até o banco para retomar o controle de sua conta, que havia sido congelada a pedido de um ministro do governo.
Ela havia acabado de completar 53 anos e estava no auge de sua carreira de 30 anos como jornalista.
Meio quilo de explosivos embalados em um dispositivo que estava sob o assento do seu carro foi detonado remotamente.
Apoiadores do governo celebraram abertamente o assassinato, o que me lembrou das cenas de comemoração com tiros ao ar na Turquia, após o assassinato do jornalista turco-armênio Hrant Dink.
Outros insinuaram que eu mesmo planejara o assassinato de minha mãe, ou que ela havia arriscado sua vida de bom grado - a mesma calúnia que se repetiu em relação a James Foley, o correspondente americano que foi sequestrado e decapitado na Síria.
O assassinato de Daphne Caruana Galizia
- Outubro de 2017: a jornalista investigativa Daphne Caruana Galizia é morta por um carro-bomba em Bidnija, Malta
- O primeiro-ministro Joseph Muscat descreve o assassinato como "bárbaro". A família barra líderes de Malta no funeral
- Dezembro de 2017: três homens são presos e promotores investigam a possibilidade de que o crime fora cometido por assassinos de aluguel
- Julho de 2018: inquérito organizado pelo governo maltês e chefiado por um magistrado livra o primeiro-ministro e sua esposa de acusações de corrupção alegadas por Daphne Caruana Galizia
- Agosto de 2018: família de Daphne Caruana Galizia exige um inquérito público completo, para verificar se Malta poderia ter impedido sua morte
Por que esses assassinatos importam tanto?
"O livre fluxo de fatos e opiniões, a atuação e o trabalho de jornalistas, criam sociedades mais justas e livres", meu irmão disse em uma reunião com diplomatas europeus, enquanto ainda nos recuperávamos de nossa perda.
"Isso cria sociedades mais ricas e mais resilientes: em outras palavras, sociedades em que vale a pena viver."
Depois do assassinato de nossa mãe, nossa única luz foi a demonstração efusão de apoio, remorso, tristeza e pesar vindos de todos os tipos de pessoas.
Isso me surpreendeu e trouxe à mente algo que um amigo me disse uma vez: "Boas pessoas estão em toda parte; você precisa encontrá-las".
O desejo de viver em uma sociedade que é livre e aberta, onde a lei é a mesma para todos e os direitos humanos são respeitados, é universal. Mas como acontece com a maioria dos desejos, ele oscila.
Muitas vezes é tarde demais quando percebemos que algumas pessoas más - que, como doenças humanas, sempre estarão por perto - assumiram o controle.
A tarefa que meus irmãos, meu pai e eu estabelecemos para nós mesmos desde o assassinato de nossa mãe é enorme: conseguir justiça por seu assassinato, justiça por suas investigações e garantir que nada disso aconteça novamente.
Agora há pouco tempo para qualquer outra coisa.
Na minha família, às vezes conversamos sobre a pouca paciência que temos para a inação e a indiferença dos outros, especialmente daqueles em posições de autoridade.
Achamos difícil não atacar seu cinismo e sua preguiça.
Os filhos do jornalista investigativo turco Ugur Mumcu me disseram que, depois que seu pai foi assassinado com um carro-bomba, o chefe de polícia desculpou-se por seu fracasso ao investigar o caso dizendo: "Não podemos fazer nada, há uma parede à nossa frente."
A resposta de sua mãe foi: "Então tire um tijolo, depois outro, até derrubar a parede inteira".
Isso é o que temos feito desde que nossa mãe foi assassinada.
Meu princípio guia no início era fazermos nosso melhor, independentemente do que viesse. Agora acho que o processo é quase tão importante quanto nossos objetivos.
Estamos forçando uma mudança cultural e gerando mais respeito pela liberdade de expressão pelo simples ato de pressionar o Estado a cumprir seu dever e fazer justiça.
Nós nos unimos a outros que estão erradicando a doença da "falta de liberdade" e ensinando ao mundo um novo respeito pelos direitos humanos no processo.
"A liberdade começa com a liberdade de consciência", nos disse o escritor Yameen Rasheed cinco dias antes de ser esfaqueado até a morte do lado de fora de sua casa, nas Maldivas, em 2017.
"Sem essa liberdade fundamental da mente, o que você faria com as outras liberdades?"
Como o de minha mãe, seu assassinato mostrou que não havia respeito por essas liberdades em nossos países.
Não cabe apenas a nós, os que ficaram para trás, assumir a luta pela liberdade: os membros da família, namoradas, namorados e amigos de jornalistas assassinados e presos.
Essa grande responsabilidade caiu sobre nossos ombros, mas não podemos carregá-la sozinhos. Precisamos de pessoas boas de todos os lugares para se juntar a nós.
O Dia Mundial da Liberdade de Imprensa
- O Dia Mundial da Liberdade de Imprensa foi estabelecido pela ONU em 1993 e é comemorado em 3 de maio de cada ano
- O tema para 2019 é jornalismo e eleições em tempos de desinformação
- O objetivo da data é celebrar, defender e avaliar o estado da liberdade de imprensa em todo o mundo, além de prestar homenagem aos jornalistas que morreram no cumprimento de seu dever
- No ano passado, 95 jornalistas e profissionais da mídia morreram em assassinatos dirigidos, atentados a bomba ou incidentes de fogo cruzado, de acordo com a Federação Internacional de Jornalistas.
Eu sei que há mais de nós. Lembre-se que o colunista saudita Jamal Khashoggi era amado por pessoas de todos os lugares.
Foi apenas uma pessoa que o odiou o suficiente para matá-lo.
Em todos esses assassinatos, incluindo o de minha mãe, há pouco ou nenhum indício de que o Estado esteja fazendo um esforço significativo para condenar as pessoas responsáveis.
Então, começamos removendo o primeiro tijolo: exigir que Malta lance um inquérito público para descobrir o que deu errado na prevenção do assassinato de sua jornalista mais importante.
Depois, vamos passar para o próximo tijolo.
Todos os dias, desejo que minha mãe nunca tivesse feito esse sacrifício em nome de seu país - preferiria que ela ainda estivesse viva.
Mas como Khadija Ismailova, um jornalista azeri cuja prisão foi descrita como "ultrajante" por grupos de direitos humanos, disse: "se realmente amamos, queremos que nossos entes queridos sejam quem são. E é isso que Daphne era - uma lutadora e heroína".
O que minha mãe nunca saberá é que sua morte inspirou milhares de atos de heroísmo em Malta e além.
E gosto de pensar que cada um desses atos, de uma forma ou de outra, protegeu outros jornalistas corajosos de ter o mesmo destino que ela.
*Sobre este texto: Matthew Caruana Galizia é jornalista investigativo e filho da jornalista Daphne Caruana Galizia, que foi morta em outubro de 2017. Você pode segui-lo no Twitter aqui.
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